Contra o Bigger Brother

Mendo Castro Henriques

Euronotícias, 22 de Junho de 2001


Eu gostava que as pessoas fossem como eu, no que aos "reality shows" diz respeito. Não vi e não gosto, e não tenho curiosidade mesmo que tivesse tempo.
E contudo, estou para aqui a falar deles porque me dói o facto de que por detrás dos "Big Brothers" existem os "Bigger Brothers" dos nossos sistemas educativos e culturais, cada vez mais estupidificantes no que não ensinam e cada vez mais estéreis porque não ensinam a amar nem pessoas nem coisas.
Como numa campanha militar, a bateria dos "reality shows" abriu fogo sobre as casas de quem abre a televisão. Apresentam-se como jogos mas escondem um sistema sádico e doentio que é a dos cânones dominantes da cultura ligeira.
O fenómeno começou na década de 80 nos EUA com programas de mau gosto que excitavam a morbidez do público ávido de perversões.
Com o tempo proliferaram como fungos. Aumentaram as situações macabras de crueldade, indecência e "realismo". Como ratos de laboratório, homens e mulheres submetem-se a provas cretinas, cumprem directrizes dos sádicos controladores profissionais, agradam a milhões de espectadores, e recebem alguns dinheiros do bolo da publicidade que move a festa. Em conjunto, os infobarões e teleproletários popularizam perversões clínicas muito complexas e graves: voyeurismo, exibicionismo, sadismo e masoquismo.
Tudo isto agrava o problema dos "big brothers", mas não o constitui. A questão centra-se em saber o que diz o "bigger brother" por detrás destes produtos aborrecidos e doentios que atraem tanta gente.
A televisão suscita a avidez de fantasia e crueza, em particular a necessidade de representação cada vez mais directa de assassinatos, massacres, desastres, guerras, violações. Como a frustração é proporcional à intensidade dos vícios observados, necessita de experiências cada vez mais fortes. E como para espectadores saturados de ficções "nada é mais real que a realdidade", proliferam os "reality shows".
Desprovidos de argumento e com filmagem deficiente, pretendem transmitir sem montagens o espectáculo público da intimidade de uma humanidade bera.
Também o espectador já não é o que era. É um participante que ignora o que é omitido e que se identifica com o narrador preferido. Perdeu capacidade de distanciamento porque perdeu meios de construir um mundo interior. O "Bigger Brother" passou por aqui.
A decadência do sistema educativo, e dos meios de comunicação clássicos, o abandono da leitura, da crítica e conclusão próprias, criaram um novo tipo de espectador. A televisão de massas processa a informação e oferece conclusões. As séries e shows passam, ao mesmo tempo, para o património cultural e para o inconsciente colectivo.
É errado afirmar-se que é o publico que faz proliferar os "reality shows". Os inquéritos mostram preferências por programas de conteúdo familiar, romântico e comédia. A proliferação é obra dos infobarões que repetem, para proletários televisuais, os cânones principais da cultura ligeira postmoderna.

Em primeiro lugar, imediatismo. "Carpe Diem" pode soar diferente no Ponto Euxino, de Ovídio, ou na Reboleira. Mas acreditar que deve viver-se aqui e agora, negando as consequências dos actos presentes e que a função da vida é obter prazer e evitar a dor, tanto caracteriza os êxitos de Margarida Rebelo Pinto, como alguns ídolos literários de Eduardo Prado Coelho, como a conduta aparente de Martas e Marcos.

Segundo aspecto: ambiguidade. As regras do jogo dizem que todos têm que proteger e servir o grupo, para obter simpatia e votos. Mas ao mesmo tempo trata-se de eliminar os companheiros. As produções sabem explorar esta cultura dos Sérgios que sofrem por romper a unidade. Afinal, também o Bigger Brother diz que o ético é o políticamente correcto, e a moral "light" centra-se no culturalmente permitido ou recusado, no que está "in" ou "out". A certa altura, esta ambiguidade só pode produzir neurose e esquizofrenia.

Darwinismo social, o terceiro aspecto. No fim triunfa o mais forte, contando como lícito tudo o que contribua para o êxito individual. Quem cuida do seu interesse permite que o grupo social funcione. É um endoutrinamento sobre a conduta a sustentar no mundo real, sem qualquer apelo a normas que regulem a violência e promovam o bem comum.

Populismo violento. Os grupos seguidos pelas câmaras têm que realizar actos gratificantes, para si e para o público que os observa. Para triunfar basta satisfazer os desejos que resultam da cumplicidade entre produtores, protagonistas e público. É uma campanha eleitoral ? É publicitar um produto? É vender uma imagem ? O "Bigger Brother" passou por aqui.

Enfim, sentimentalismo desenfreado. Sentir é mais importante que manter íntegros quem se é e o que se pensa. Todos exageram sentimentos, porque o sentimento é o passaporte para se integrar no grupo, ganhar reconhecimento social, ser aceite. Claro que mais tarde ficarão tão adaptados ao grupo que adoptam qualquer regra por mais repulsiva que a considerem. É o efeito Margarida de Borba.

Mas os cânones da cultura ligeira não são combatidos com tiradas morais contra a arraia miúda de voyeuristas e exibicionistas que enchem os "Bares da TV. A crítica dos cretinos deve ter outro alvo.
"Acerca da Estupidez", de Robert Musil e "Bouvard e Pécuchet", de Gustave Flaubert são dois deliciosos livros que narram o que sucede quando os cretinos tomam conta do mundo, em particular quando os pequeno-burgueses armados de informação julgam poder falar e decidir sobre os destinos da humanidade.
Lá mais para trás teríamos que referir o "Elogio da Loucura" de Erasmo, e "Gargantua e Pantagruel", de Rabelais, para encontrar literatura que sabe zurzir nas fuças dos idiotas à solta, até eles estrebucharem de vez.
A função do crítico é identificar e zurzir os "Bigger Brothers" que se escondem nos bastidores com as propostas estúpidas e fracturantes do nosso tempo. Exactamente como nos "Big Brother", só que traduzidas para calão intelectual.

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