A cultura do medo

Manuel Pinto-Coelho Euronotícias 2001.10.26
Mas que mundo estranho este o nosso que se sente vulnerável e inseguro por causa de um mal para o qual a ciência já há muito encontrou um antídoto e que até à data não vitimou ao todo mais que duas mãos-cheias de pessoas, insistindo em viver masoquisticamente em sessão contínua à espera sofregamente de mais alguma notícia que possa continuar a alimentar a sua sede draculineana de mais vítimas desse “terrível” antraz, qual flagelo implacável que, a todo o momento, através de um qualquer sobrescrito mais manhoso se pode abater sobre a cabeça do mais incauto, gastando milhões para caçar os terroristas responsáveis, negligenciando uma oportunidade de ouro para, isso sim, prevenir facilmente um mal que mata incomparavelmente muito mais, utilizando meios incomparavelmente mais modestos e não tendo ainda por cima que sacrificar qualquer vida humana!?
Referimo-nos, claro está, à toxicodependência, à heroína, de que os afegãos “contribuem” com 65 a 70% de toda a produção mundial e que, a nosso ver, deveria cativar de outra maneira a opinião pública.
Ora, se esta, na sua grande maioria, aceitou a invasão americana do Afeganistão, sabendo que as possibilidades de se encontrar Bin Laden são diminutas, será que não iria aceitar muito mais depressa que se desviasse uma infinitésima parte dos seus recursos, para se pulverizar com os produtos adequados, os seus extensíssimos campos de papoilas, ferindo assim de morte não só a principal fonte de receita das suas acções terroristas, mas, o que nos parece indubitavelmente muito mais importante, reduzindo drasticamente, logo na origem, a principal causa do maior flagelo social que se conhece, essa verdadeira praga que teima em aterrorizar milhares e milhares de pessoas deste nosso mundo em que vivemos?
Se é verdade que o presidente americano nos convidou sem rodeios a assumirmos uma posição firme e resoluta, colocados que estamos perante o problema do terrorismo, desafiando-nos a adoptar claramente uma posição inequívoca, a favor ou contra, porque não convidá-lo agora, a ele, na mesma linha, a adoptar uma posição de igual modo clara, de repúdio para com o terrorismo provocado pela heroína e arrasar sem contemplações aqueles campos responsáveis por muitas mais mortes por esse mundo fora que várias torres gémeas e Pentágonos juntos, sugerindo-lhe ainda e para dar o exemplo, que começasse por fazê-lo às suas próprias plantações de cannabis, responsáveis por 20% da produção mundial de haxixe?
É que, francamente, , que esfrega as mãos de contente com toda a situação criada.
Perguntamos nós: já se imaginou no que se lucraria em termos de saúde pública, se houvesse habilidade para desviar uma fatia por pequena que fosse, das verbas gastas em segurança por causa do antraz para a prevenção e tratamento de doenças como o dengue, o paludismo, a Sida e a tuberculose, para não falar das doenças cardiovasculares que, como aquelas, matam um número incomparavelmente maior de seres humanos neste planeta?
“A única coisa que temos de recear é o próprio medo.” Quem falava assim era Franklin Roosevelt, em 1933.
Também nós achamos que às vezes dá-nos para recear as coisas erradas e é extraordinário constatar a facilidade com que todos, sem excepção, embarcamos à primeira com os “medos” que a comunicação social nos tenta transmitir, não percebendo que esta não está a fazer mais que o seu papel!
Na realidade, parece-nos claro que a “cultura do medo” levantada entre outras coisas pelo bacilo do carbúnculo é determinada em boa parte pelos “media” especialmente pela televisão e é espantoso como nós, incluindo os cidadãos americanos e o seu presidente Bush, não nos apercebemos de que essa é tão-só a sua forma de subsistência, jogando, com a sua cegueira, a favor de quem menos lhes interessava!
Manuel Pinto-Coelho
Médico

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