Deus, Nós e Amálgamas

MÁRIO PINTO
Público, Segunda-feira, 1 de Outubro de 2001


1. Doutrina e ideologia

No Antigo Testamento, colecção de livros sagrados do judaísmo e do cristianismo, há um profeta considerado dos maiores, Isaías, de que nos ficou a seguinte profecia:

"Diz o Senhor: os meus planos não são os vossos planos; os vossos caminhos não são os meus caminhos. Tanto quanto se acham elevados os céus acima da terra, assim se acham elevados os meus caminhos acima dos vossos caminhos e os meus planos acima dos vossos planos". (Is 55, 8-9).

Esta citação serve para mostrar que, desde há milénios se sabe, e não apenas entre os cristãos, que os próprios crentes têm pensamentos e caminhos que não coincidem com os de Deus. Nenhuma novidade, nenhuma surpresa, a este respeito. Aqui se encerra um problema, por assim dizer de doutrina; mas se abre outro, que é já de praxis, ou de ideologia. É nesta sede que se coloca o problema da fidelidade ou da infidelidade ao espírito de Deus.

Em termos filosóficos, reencontramos aqui (em minha opinião) o problema que é oportunamente tocado por Fernando Gil, no seu belo artigo do dia 11 último no DN; o problema da alegada "amálgama". Escreve ele: "Desgraçadamente, elas (amálgamas) estão nas próprias coisas. Os fundamentalistas conseguiram fazer passar as suas posições políticas por actos de fé religiosa".

Numa perspectiva de reflexão metodológica, sinto-me sempre reenviado ao ensino de um dos meus queridos e saudosos companheiros e mestres, Adérito Sedas Nunes, fundador da nova escola de sociologia portuguesa. Num livro que saiu apenas editado para os seus alunos (Introdução ao estudo das sociedades, Instituto de Estudos Sociais, Lisboa, 1963-1964, texto copiografado), ensinava ele a distinção entre as doutrinas e as ciências sociais; e, por sua vez, a distinção entre as doutrinas e as ideologias. É que as ideologias incorporam, para além de pensamento doutrinal, outros elementos, designadamente desígnios de poder, interesses, frustrações, etc. Na década de sessenta, que foi uma década de debate epistemológico, ilustres marxistas prestaram também homenagem a esta distinção, falando então de pensamento marxiano, como doutrina de Marx, por um lado, e de marxismo, por outro lado.

Pelos vistos, a propósito deste novo terrorismo que atingiu a América, continuamos a fazer amálgama entre pensamento doutrinal e ideologias, entre religião (doutrina da fé) e religião (fundamentalismos cesaristas). Nada de novo, portanto; apenas nos repetimos novamente. Mas parece que alguns têm menos memória do que outros.
2. Proposta de "cut" virtual

Lendo na imprensa artigos de pessoas com um currículo brilhante, como Fernando Rosas e Miguel Sousa Tavares (aliás em textos não comparáveis, e até com opiniões contrárias), vem-me uma ideia: que tal se pudéssemos fazer uma experiência virtual?

Assim, para Fernando Rosas, o exercício seria apagar do mundo os Estados Unidos da América. De repente, sem mais, com uma batida de teclado: clic. Não mais "América". Ficaria a Europa Continental ("sorry!", mas o Reino Unido teria de ser apagado com os Estados Unidos), a América Latina, o Canadá (podia ficar), a Ásia, a África e a Oceania (também podia ficar).

Para Miguel Sousa Tavares, que diz que "Deus é hoje o grande factor de desordem internacional" (PÚBLICO, 28), o exercício seria apagar do mundo as crenças em Deus. Tic: ninguém mais, neste mundo de Deus, acreditaria mais em Deus. Não mais Vaticano. Não mais religiões orientais. Não mais o Islão. Nem mesmo os horóscopos. De humanismos, ficaria(m) apenas o(s) laico(s), como o "humanismo real" em que Saramago tem fé. Aliás já experimentado, em países que impuseram o ateísmo. E de resto também liberalmente disponível, para os numerosos ateus do mundo.

Claro que a minha proposta é apenas um exercício a prazo. Com possibilidade de retorno ("undo").

Uma variante deste exercício poderia ser de simulação virtual de um passado alternativo. Neste sentido, deixaria um desafio: o de um livro histórico sobre esse passado. Apagando da história do mundo tudo quanto é América do Norte e fé em Deus. Seria de modo especial interessante conhecer como teria sido o mundo desde a última guerra mundial sem os Estados Unidos. E o que teria sido a nossa cultura (no ocidente), ao longo destes dois mil anos, sem o cristianismo.
3. De novo, a avaliação das escolas

É visível na imprensa uma orquestração de críticas à publicidade dos resultados nacionais no ensino secundário. Do lado sindical, já houve quem criticasse o Ministro da Educação por divulgar os dados referentes aos exames nacionais do acesso ao ensino superior. Com risco, evidentemente, de que se pense que os sindicatos não querem que os cidadãos em geral conheçam essa realidade (a dos resultados dos exames) porque (pensam que) são os professores que assim (também) ficam em causa.

Continua a propor-se uma alternativa abstracta, de "avaliação qualitativa" dos resultados. Todos os progressos em matéria de avaliação são bem-vindos. Mas esta tese da avaliação qualitativa para substituir avaliações quantitativas lembra a tese soviética, da recusa de publicar indicadores quantitativos de variáveis sociais e económicas, precisamente com o mesmo argumento, isto é, de que o desenvolvimento socialista era sobretudo qualitativo. Sabemos agora inequivocamente o que isso então significava.

Num artigo recente, chega-se a insinuar um argumento de ilegalidade. Ora, a verdade é que, pelo contrário, foi a lei do acesso aos documentos administrativos que impôs ao Ministro que facultasse o conhecimento das classificações dos exames nacionais. Aliás, por determinação da Comissão Nacional legalmente incumbida de aplicar a lei, a quem os cidadãos interessados tiveram de requerer em conformidade.

Dir-se-ia que, segundo um imperativo de coerência, os defensores do segredo das classificações deveriam propor a extinção dos exames nacionais com avaliações quantitativas - porque esses exames são incapazes de avaliar os alunos segundo a orientação qualitativa. E, pelas mesmas razões, também deviam propor a extinção das avaliações internas quantitativas. Pelo menos, a sua afixação pública nas escolas - embora para isso lhes falta uma base legal. A menos que se invocasse a privacidade (de que resultaria a irrelevância da avaliação e a impossibilidade de os alunos concorrerem entre si). Mais do que isto, só uma classificação como segredo de Estado.  

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