O Lugar do Meu Deus

MÁRIO PINTO
Público, Segunda-feira, 22 de Outubro de 2001


1 - No Público do dia 20, Helena Matos escreveu um artigo focando o lugar de Deus e o lugar dos homens numa civilização da concórdia universal. O artigo respira uma visão alternativa entre Deus e os homens; entre o lugar de Deus e o lugar dos homens. Nele se nota que Deus tem um lugar, o lugar «da consciência e da fé» de cada um dos crentes. Mas que «a vida dos homens no mundo, essa, depende dos homens». E se conclui que «por amor dos homens - e porque não de Deus? - convém que jamais confundamos uma coisa com a outra».

Li esta reflexão e estou de acordo com a ideia da autonomia das realidades terrenas. Contudo, debaixo desta formulação a Autora parece defender uma convicção acerca do lugar de Deus que não é a minha. O Deus da minha fé está excluído da sua pressuposição. Vale então a pena que eu exponha algumas reflexões, a este propósito.

2 - Helena Matos considera que, com «colocar Deus no seu devido lugar», «um dos mais importantes exercícios da civilização ocidental», «foi resolvido por milhões de crentes, nomeadamente católicos que, independentemente da sua fé, determinaram colocar outros valores acima dos ditames das suas Igrejas». É nesta base que a Autora explica como «os cidadãos dessa mesma civilização (ocidental), independentemente de serem crentes ou não, devem muito da sua paz, da sua tolerância e da sua qualidade de vida precisamente ao facto de agirem "como se o futuro do mundo dependesse apenas do homem e do seu poder"».

Estas afirmações podem levar a pensar que só por fora e por cima das igrejas foi possível a modernidade. É uma ideia pós-modernista da modernidade: a de que as concepções substantivas da verdade e do bem (como as das religiões) são todas exteriores à polis e à civilização; e até lhes são prejudiciais. O que implicaria uma contradição das igrejas, e também das cristãs, com o espaço público. Ora isto, se fosse verdade, nenhum crente católico o poderia aceitar sem contradição pessoal insanável. Mas não é. A verdade é que não existe essa contradição.

A autonomia das realidades temporais é um ponto da fé dos cristãos. Logo, não é contraditória com essa fé. Está escrito no Génesis que Deus disse ao homem e à mulher (ao par): ide, sede fecundos; transformai a terra e dominai o mundo. Desde então, para os crentes, o mundo está à conta dos homens por determinação de Deus. A chamada autonomia das realidades terrestres é uma ideia assente desde os princípios do cristianismo. Desde os alvores das primeiras comunidades cristãs, S. Paulo recomendava estritamente aos seus discípulos para respeitarem a autoridade estabelecida e pagarem honestamente os seus impostos (Rm 13,1-7). A autoridade civil era logo então pensada como não tendo necessidade de ser cristã ou religiosa. Os cristãos integravam-se como cidadãos iguais aos outros na sociedade civil e política; respeitavam essa sociedade e cooperavam nela, pagando os seus impostos, que são a base da organização social e política. Do Concílio Vaticano II, a Constituição pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo diz (entre muitas outras afirmações que seriam úteis para aqui), que «aumenta cada dia mais no mundo inteiro o sentido da autonomia e da responsabilidade, o qual é da máxima importância para a maturidade espiritual e moral do género humano» (GS 55).

Portanto, aceitando embora que historicamente houve desvios e instrumentalizações, não há, para os cristãos, nenhum lugar de Deus que retire à sociedade civil a sua autonomia. É aliás sabido que Jesus Cristo recusou sempre qualquer compromisso com a política e a construção humana da sociedade civil e política. Este é um dos factos mais extraordinários da vida de Jesus. Talvez tenha sido por isso que Judas o traíu.

Sendo assim, a tese da exclusão da fé de milhões de crentes, ou a da incompatibidade subordinada da doutrina de todas as igrejas, relativamente à civilização ocidental, só poderia ser afirmada com a demonstração da contradição dos respectivos conteúdos. O que não se pode dar como provado.

3- Gostaria ainda de esclarecer um outro aspecto acerca do lugar de Deus, no cristianismo. É que o Deus dos cristãos está sem dúvida nas consciências e na fé dos crentes. Mas, para cada crente, o lugar de Deus é, antes de mais, nas pessoas dos outros. O Evangelho não cessa de o dizer. Mateus relata o ensinamento de Jesus, que disse: «portanto, se estiveres para fazer a tua oferta no altar e te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão» (Mt 5, 23-24). E S. Paulo catequisou: «ninguém procure satisfazer os seus próprios interesses, mas os do próximo» (1Cor 10,24). Ao longo do Novo Testamento, Deus identifica-se sempre com o outro, sobretudo o pequenino, como se vê na descrição dramática do juízo final no Evangelho de Mateus (Mt 25, 31-46), em que Cristo pronuncia estas palavras: «de cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes». Eis portanto aí o lugar de Deus que é proposto como decisivo para toda a vida do crente.

Não conheço, nem concebo, melhor base para a paz, a tolerância e a qualidade de vida da civilização universal. Devo portanto insistir: os católicos não precisam de colocar outros «valores acima dos ditames da sua Igreja» para contribuirem para essa civilização; não precisam de considerar que «a vida dos homens no mundo, essa, depende dos homens», mas que a sua fé é «outra questão». Não é outra questão. O problema está noutro lado. Lê-se na Constituição conciliar já citada, que afirma a autonomia das actividades temporais: «no entanto, muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a íntima ligação entre a actividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências» (GS 36).

Todos teremos presente o exemplo dos talibans. Mas esse, como os demais exemplos históricos de desvios autoritários ou totalitaristas ligados a doutrinas religiosas (como até ao cristianismo), não são nenhuma prova de que os valores civilizacionais, fraternais e universais estão por cima das religiões e contra elas. Até porque também há totalitarismos não ligados a religiões e anti-religiosos. Esses valores estão portanto apenas acima dos autoritarismos e dos totalitarismos, tout court. Pessoalmente, quero valorizar essa afirmação substantiva de valores humanistas da civilização ocidental. Que as religiões elevadas iluminam e fundamentam, mais e melhor do que qualquer outra fonte de pensamento ou convicção.

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