Afeganistão: Uma Guerra com Sexo

ZITA SEABRA
Público, Domingo, 4 de Novembro de 2001

Já se entendeu em todas as guerras recentes que tão importante como a condução das operações militares no terreno é a capacidade de fazer propaganda. Está em muitas memórias a influência decisiva da divulgação da fotografia da menina vietnamita bombardeada com Napalm para o desenlace da guerra do Vietname, e ainda não estávamos, como hoje, na era das comunicações, da televisão, da Net.

Vivemos presentemente um tempo em que tudo está tão próximo de nós, que temos a sensação de que a informação é neutra e isenta, que não é possível que ninguém a filtre e que somos nós, cada um de nós, que está no terreno a julgar com os seus próprios olhos o que se está passando. Há, porém, um momento em que consciencializamos o que estamos a ver e sobretudo o que estamos a não ver. É esse o momento em que a passividade do telespectador dá lugar à indignação, por vezes tão profunda que temos necessidade de a partilhar com outros.

Tudo isto vem a propósito das imagens que nos chegam do Afeganistão, particularmente das filmagens de vítimas civis dos bombardeamentos que ocorrem há três semanas. São imagens cedidas por um canal Árabe, autorizadas pelos taliban, filmadas no Afeganistão e retransmitidas pelos canais de televisão de todo mundo, incluindo as televisões portuguesas. São imagens de feridos civis nos hospitais afegãos, de pessoas feridas deitadas nas camas das enfermarias ou de pessoas feridas nas aldeias, ou nas cidades do país que se encontra sob os bombardeamento.

Ontem, vendo mais uma vez imagens, repentinamente consciencializei que até hoje não se viu, ninguém mostrou que eu tivesse visto, nenhuma mulher numa daquelas camas de hospital improvisadas num terreno de guerra! Corri rapidamente todos os canais nacionais e estrangeiros para verificar se nalgum sítio me aparecia uma única mulher ou uma única menina.

A conclusão é evidente: a acreditar nas imagens dos taliban, não há mulheres feridas. Se as imagens mostram só homens, mostram só meninos, é porque elas não existem. E qual será a razão de tão estranha constatação, sabendo-se que quando populações civis são bombardeadas são sempre elas as primeiras vítimas? Será que as bombas escolhem o sexo? Será que as vítimas são afinal militares e não civis? Ou será que os taliban, mesmo em guerra e com imagens para impressionar o Ocidente, não autorizam que as mulheres tenham tratamento nos hospitais deles, tal como decretaram desde que chegaram ao poder no Afeganistão já lá vão seis anos? Sabe-se, infelizmente, que, em todas as guerras, quando existem vítimas civis, a maioria são sempre mulheres e crianças. São elas as mais fotografadas e mostradas porque simbolizam a imagem da injustiça de quem é apanhado num conflito sem armas na mão.

Será que os taliban, fiéis à sua interpretação das leis religiosas que chamaram suas, deixam as mulheres morrer pura e simplesmente sem tratamento médico ou hospitalar, com o argumento de que não podem ser olhadas ou tocadas por nenhum outro homem? Será que, tal como acontece desde há seis anos (em que as deixam morrer de parto, ou morrer doentes), as deixam morrer feridas sem tratamento médico e hospitalar? Desde que chegaram ao poder, é sabido que os taliban não autorizam as mulheres a trabalhar e não consentem que sejam médicas ou enfermeiras, pelo que as doentes morrem em casa sem tratamento para que nenhum olhar masculino as toque...

As imagens que nos mostram dos hospitais no Afeganistão, só com homens, são a imagem mais cruel de uma guerra e não podem escapar a nenhum olhar civilizado. Não há diferença cultural (?), argumento religioso ou outro, que possa deixar passar essas imagens. A partir do momento em que pessoalmente interiorizei esse facto, de cada vez que os écrãs da televisão fixam os feridos de um hospital, só consigo perguntar a mim própria pelas mulheres e pelas meninas!

Como parecem estranhas as discussões de argumentos fantásticos em colunas enormes dos jornais ou em seminários bem pensantes, ou em programas de rádio, procurando apurar com rigor se estamos a assistir afinal a uma guerra de culturas, ou de religiões, ou dos pobres contra os ricos do mundo, ou de Deuses. Face a tamanha eloquência, só me vem ao pensamento a realidade da vida das mulheres, proibidas de aceder aos tratamentos médicos, que morrem de parto e de dor, que não podem ir à escola, nem à rua, que não podem fazer planeamento familiar - mulheres a quem até o olhar lhes é negado.

Não se pode deixar de pensar no que é a vida destas afegãs, vivendo em poligamia e coexistindo com o evidente pressuposto de que, se morrerem, o "seu" homem não fica viúvo porque tem mais 17 ou 18 mulheres para substituir alguma que adoeça e morra. E nova questão tem de ser colocada: será a poligamia uma das diferenças culturais de que se fala? Ou a monogamia é uma conquista civilizacional da humanidade inquestionável à luz dos nossos valores?

A mutilação sexual dos órgãos genitais femininos, como existe nalguns países muçulmanos de África (como o Togo, por exemplo), será também uma mera diferença cultural entre nós e eles? Ou constituirá uma barbaridade contra as mulheres e a universalidade dos direitos do Homem? Se é assim, então não podemos permitir que, quando vivem entre nós, tal prática seja invocada em nome de uma qualquer tradição cultural ou religiosa. E temos mesmo a obrigação de a denunciar. Ou será que alguém discorda da decisão, já tomada nos Estados Unidos e em França, de conceder o estatuto de asilo de refugiado a mulheres que fugiram dessa barbaridade?

Quando os taliban mandam imagens dos seus hospitais e não se vê nenhuma mulher ou menina, não pode haver complacência como se observássemos uma qualquer bizarria cultural do mundo islâmico. Devemos, sim, olhá-las com os olhos da nossa visão, de quem aceita que as conquistas civilizacionais, como o direito à igualdade (e aqui escrevo expressamente igualdade) entre o homem e a mulher não são questionáveis.

As imagens e os testemunhos que nos mostram que os taliban consideram que têm o direito de bater nas mulheres com paus porque mostram um pouco de pele, como fazem nas ruas de Cabul, não serão suficientes para se desejar, todos os dias, que rapidamente aquelas mulheres sejam libertadas e, juntamente com as suas filhas, tenham direitos que para nós fazem já parte da nossa identidade, da nossa pele? Ou alguma diferença cultural pode justificar aqueles paus que se vêem nas televisões não autorizadas pelos taliban? Diferenças culturais?

Dir-se-á que nós - as que não vivemos em poligamia, e que vamos ao hospital se estamos doentes e que não consentimos que ninguém nos tape a cara - só acordámos depois de percebemos que alguém atirou uns aviões cheios de homens, mulheres e crianças contra prédios cheios de pessoas. E, no entanto, desde os anos sessenta que não só as feministas, mas todas as que lutaram pelos direitos das mulheres, demonstraram que uma sociedade que oprime as mulheres não é uma sociedade livre, não é uma sociedade democrática, não é uma sociedade compatível com os valores civilizacionais que conquistámos. Apesar disso, durante anos fomos sabendo que as aquelas mulheres eram tratadas pelos taliban pior que nós tratamos os animais e preocupámo-nos mais com eles do que com elas. Deixámo-las sem palavras de denúncia, sem campanhas de mobilização, sem feministas que se manifestem e sobre elas escrevam e lhes façam chegar a nossa indignação.

Mas, mesmo agora, depois de nos mandarem imagens de hospitais sem mulheres e meninas; depois de sabermos que há países onde o prazer é abolido; de vermos mulheres batidas na rua com paus por serem mulheres; de sabermos que há mulheres proibidas de ir à escola; ou depois de termos consciência de que cada um daqueles homens tem dúzias de mulheres que acham ser sua propriedade privada; que têm 52 filhos e dezenas de irmãos; e de sabermos muito mais que tudo isso, ainda há quem discuta se não devemos respeitar estas diferenças culturais ou sociais da nossa civilização ocidental, a que alguns chamam decadente, e a deles, a que outros chamam "diferente".

Há mesmo quem sinta mais culpa por vivermos com os nossos valores do que culpa por consentirmos que esta barbaridade se passe em frente aos nossos olhos e até consinta que, quando alguns emigrantes chegam ao Ocidente, vivam com essas especificidades como a poligamia, ou tapem a cara das filhas para andarem nas nossas ruas ou as mandem de "chador" (esse símbolo da inferioridade feminina) às nossas escolas. Isto é: que nos imponham em nossa casa, aquilo que, com tanto sacrifício, abolimos há anos na lei e na vida do nosso mundo.

Uma sociedade onde o prazer e o gosto é proibido é uma sociedade condenada. Esperemos que rapidamente as mulheres afegãs se vejam livres de um pesadelo e se encontrem com um tempo que felizmente é o nosso e o das nossas filhas.  

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