Guerra Santa

João César das Neves
DN 2001.11.26

As grandes religiões, incluindo o Islão, estão todas de acordo: Deus não gosta nada da violência e da guerra. Ele é o Deus da paz. Mas uma distorção subtil deste ponto tem vindo a ser usada para fazer guerra à religião. Diz ela que a luta entre crentes é inaceitável em qualquer situação. Ela é mesmo incompreensível. O nosso tempo não entende que alguém lute e morra em nome de Deus. Por isso despreza a religião.
A agressão é sempre, obviamente, inaceitável. Existe apenas um caso em que a violência se justifica, a legítima defesa. Foi essa a razão que os americanos invocaram para este ataque. O argumento é muitas vezes abusado, mas isso não lhe tira a lógica. Todos a aceitamos. Os combatentes pela liberdade têm um lugar elevado na glória da sociedade ocidental. A nossa opinião pública, tal como todas as culturas em todos os tempos, percebe perfeitamente que uma pessoa ou um povo se levantem em armas para defender as suas vidas, casas, modo de ser. O que não compreende, ao contrário das culturas de todos os tempos, é como alguém pode lutar pela sua fé. Até hoje, o ser humano sempre achou normal que, entre as coisas por que se está disposto a morrer, esteja o valor supremo da religião. Vivemos na primeira época que o desconhece. Quem é aqui o obscurantista?
Esta nossa limitação manifesta-se de várias formas. Fazemos, por exemplo, enorme ginástica mental para conseguir explicar por razões socioeconómicas, que são as únicas que verdadeiramente entendemos, o comportamento dos cruzados da fé e dos mártires da religião. Essas complexas elaborações lógicas, de que estamos tão orgulhosos, pretendem mostrar a ingenuidade dos que, na nossa visão materialista, pensam morrer por Deus mas apenas servem interesses produtivos. Realmente, a única coisa que tais raciocínios mostram é a nossa indigência espiritual e intelectual.
Ficaríamos muito ofendidos se alguém justificasse por motivos interesseiros a luta generosa dos voluntários da Guerra de Espanha ou da resistência ao nazismo. Mas não nos damos conta da aleivosia que cometemos na interpretação dos combates de religião. Se fosse por problemas de mercearia, acharíamos razoável que lutassem, mas não por convicções. Quem é aqui o fanático?
Um caso interessante, de que tanto se tem falado, é o das Cruzadas. Vistas como a suprema tolice do Ocidente e como uma infâmia histórica, essas expedições são tão intensamente desprezadas como incompreendidas. É importante notar que as Cruzadas têm muito pouco a ver com o ódio entre cristãos e muçulmanos. De facto, Jerusalém e a Terra Santa foram conquistadas pelas forças islâmicas logo em 637, cinco anos após a morte do profeta, mantendo-se debaixo do poder árabe ao longo de todos os séculos seguintes.
Mas este facto, naturalmente dramático para judeus e cristãos, não despoletou nenhum levantamento ou "guerra santa" por parte da Europa. O califa Omar e os seus sucessores permitiram as peregrinações aos lugares santos e em breve tudo se normalizou. Foi só quando em 1055 os turcos seldjúcidas tomaram a Palestina que as coisas mudaram radicalmente.
Os turcos oprimiam igualmente muçulmanos, judeus e cristãos. E, acima de tudo, fecharam a Terra Santa aos devotos. Para os medievais, esse atentado constituiu uma ofensa muito mais grave do que o corte do petróleo seria para nós. Quando, depois de várias tentativas diplomáticas falhadas, o papa Urbano II apelou em 1095 à primeira cruzada, toda a Europa aderiu entusiasticamente, porque compreendeu bem o seu significado. Poucos sabem hoje que este papa, que assim chamava os exércitos a lutar por Cristo, estava desterrado de Roma há anos pelas lutas na cidade. Mas nada parecia importante ao lado da impossibilidade de visitar o lugar da Ressureição. De todo o lado vinham pessoas alistar-se para poder arriscar vida, bens e viver em condições miseráveis. Mas faziam-no em nome do que tinham de mais elevado, a sua fé.
Obviamente que nas Cruzadas se cometeram excessos horrorosos e chacinas inaceitáveis, que aliás o papa, a Igreja e a sociedade condenaram. É assim em todas as guerras. Mas a origem e motivação destas incluem uma grandeza de espírito que falta aos nossos tempos.
A nós, não é tanto o problema da guerra que nos choca nos acontecimentos antigos e recentes; é mesmo a parte religiosa. Compreendemos que alguém lute e morra pelos valores em que acredita. O que nos custa é acreditar em Deus.
A fé é caminho de paz, como a Igreja o mostrou sempre ao longo dos séculos.
O nosso dever hoje é trabalhar pela harmonia entre os povos e o diálogo das culturas. Por isso, é muito triste e sério que pessoas, devido a uma horrorosa distorção na compreensão do que Deus quer, se entreguem ao morticínio em nome da sua fé. Mas é também muito triste e sério ver tantos que, atulhados em ocupações e delícias, não elevam os olhos acima da poeira. Desprezam mártires e cruzados só porque lhes falta ideal de vida mais alto que o seu ventre.

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