"Tu és donde?"

João César das Neves
DN 2002.04.15

Nas últimas semanas esta modesta e pacata coluna foi bastante criticada por várias razões. Como sempre, não entro em polémicas. Não por falta de respeito aos críticos (respondo sempre escrupulosamente a todos os que se correspondem comigo), mas por grande respeito ao espaço que o DN generosamente me disponibiliza. Tenho o dever de o usar apenas em assuntos interessantes e actuais e nunca em questões que, no fundo, são de orgulho pessoal.

Mas estas críticas levantam um problema e suscitam uma reflexão relevante. De facto, os argumentos utilizados reduziram-se quase apenas à ideia de eu ser "de direita". Como, alegadamente, pertenço à "direita", o que quer que isso queira dizer, estou arrumado. Ninguém se interrogou se tinha ou não razão no assunto concreto. O importante é classificar, apregoar o que o outro é. Sempre a pergunta de Pilatos: "Tu és donde?" (Jo 19, 9)
O interesse deste ponto está em revelar uma característica típica do nosso tempo. Vivemos numa era em que quase nunca se fala de certo ou errado, de bem e mal. Interessa apenas saber com quem se alinha, se pertence aos nossos ou aos outros. Numa cultura que se afirma de tolerância e democracia, a ânsia dos rótulos e dos partidos cria uma censura de facto muito mais tacanha e injusta que a tradicional.
Usamos mais adjectivos que qualquer época anterior, mas os termos "bom" e "mau", "verdadeiro" e "falso" quase não são utilizados e parece que perderam muito do seu significado. Essas palavras são vistas como dogmáticas e discutíveis e apenas podem aparecer em frases que lhes destróiem o sentido como "não tem mal nenhum", "cada um tem a sua verdade". O relativismo reinante acha mesmo que não há qualquer referência absoluta que determine, de forma objectiva, o correcto e o ordenado. Depois, como é óbvio, é incoerente, porque simplesmente não é possível viver sem a busca da verdade e do bem. Toda a gente precisa de um terreno sólido para se apoiar e não pode viver em cima da nuvem diáfana do opinativo. Daí o domínio de classificações rígidas como "direita" e "esquerda", "progressista" ou "conservador", que, curiosamente, são tomadas por uns como boas e outros como más, mas sempre usadas mais dogmatica e intolerantemente do que alguma vez se usou as de "bom" e "mau". Mas conheço pessoas boas à esquerda e à direita; ouço opiniões verdadeiras de muitos lados.
A visão moderna parte de um fundamento válido. Neste mundo não existe o bem perfeito ou o mal absoluto. Qualquer bem tem alguma falha e não existe mal sem aspectos positivos. Esta é uma certeza que os sábios sempre afirmaram. Mas isso não pode impedir a busca incessante do bem que caracteriza a nossa vida. O que define o animal humano é esta dualidade: viver na imperfeição, sempre aspirando ao ideal perfeito.
Nesta demanda universal do sublime, a época moderna partiu da hipocrisia dos antecessores, a quem acusou de adorarem modelos defeituosos. De facto, o Romantismo tornou a busca do bem tolamente triunfal. Os heróis míticos eram artificialmente inumanos, angelicamente postiços. Em reacção, os contemporâneos caíram no extremo oposto. Com paixão pelo paradoxo, começaram a louvar a fortaleza dos fracos, a virtude dos ladrões, a beleza do feio. O modelo passou a ser o anti-herói. Depois de Oliver Twist, Tom Sawyer e o vagabundo de Charlot caiu-se agora no paroxismo de Harry Potter, onde os bons são bruxas e feiticeiros e os rebuçados sabem a lodo. O mal e o bem estão invertidos. Esta inversão manifesta-se em múltiplas áreas. Na arte, pela beleza que concedemos ao grotesco; na política, pela irresponsabilidade que atribuímos aos nossos responsáveis; na sociedade, pela antipatia do sucesso, da riqueza, da honra.
Este esforço de procurar o bem no que a Humanidade tende a achar mal é, em si, muito louvável. Foi Jesus Cristo quem, mais que ninguém, ensinou a respeitar as prostitutas, a justificar os estrangeiros, a ver a felicidade nos leprosos. Foi com Ele que apareceram paradoxos como "últimos que são primeiros", "amar os inimigos", "quem se exalta ser humilhado", "perder a vida para a salvar", "bom ladrão".
Mas é preciso não confundir, como tantos pretendem, a posição moderna com a atitude de Jesus. Os contemporâneos não são aqueles que, como Cristo, procuram a dignidade e a bondade em todos e indicam as portas da salvação a qualquer um, sejam cegos, estrangeiros, drogados ou adúlteros. Porque hoje não se consegue ver nenhuma dignidade nos banqueiros, nos banquetes, na globalização e no império americano.
No fundo, são tão preconceituosos como os fariseus. Jesus acolheu a mulher adúltera e o centurião romano; recebeu a pecadora, mas fê-lo num jantar em casa do respeitado Simão.
Eu não sou "de direita", que julga bons os banqueiros e más as prostitutas, nem "de esquerda", que aprova as prostitutas e reprova os banqueiros. Eu sou de Cristo, que sabe que todos são pecadores e todos se podem salvar na humildade e na caridade.

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