Sinais do acaso, sinais da necessidade: a inteligível extensão

Por JOÃO BÉNARD DA COSTA
Público, Sexta-feira, 29 de Novembro de 2002
Cada vez mais a questão é essa, para Night Shyamalan ou para mim: a quem falamos e quem nos ouve? Quem nos ouve e a quem falamos?

"Definitively I'm in the miracle side"

Manej Night Shyamalan

1 - Vou conversar hoje sobre "Signs", o último filme de M. Night Shyamalan. Como ainda acredito que a crítica ganha alguma coisa com a paixão, como me recuso a acreditar, segundo outro dia vi escrito, "que a globalização em que vivemos exige profissionais desapaixonados, por imperativo de nomadismo laboral", é com paixão que vos vou falar de "Signs", como foi com paixão que há uns anos vos falei de "The Sixth Sense" ou de "Unbreakable". Desde que vi o primeiro, comecei-me a convencer de que este realizador americano, de origem indiana, era um dos vários que valia a pena seguir com paixão. Até à data, não vejo razão para me desdizer, embora reconheça que na algóstase dominante (insensibilidade à dor, insensibilidade ao prazer) seja difícil aos "profissionais desapaixonados" aceder ao mundo deste ocasionalista reencarnado nos séculos XX e XXI.

2 - A cena fundamental de "Signs" situa-se no último terço dele, quando os protagonistas, barricados em casa, aguardam o eminente ataque das criaturas vindas de outros mundos.


Na casa, estão dois irmãos, ambos agricultores nas infinitas planícies que rodeiam Filadélfia, cidade e paisagem obsessivos na obra de Shyamalan. O mais velho é Mel Gibson. O mais novo Joaquin Phoenix. Graham (Mel Gibson) fora, até há pouco, padre. Mas perdeu a fé quando a mulher morreu, num desastre de automóvel. Com os dois irmãos, estão os dois filhos de Graham, um rapaz e uma rapariga, ainda crianças (qual é o filme de Night Shyamalan em que as crianças não têm um lugar central, genialmente dirigidas?).


No horror daquela noite, Graham pergunta-se a certa altura se coisas como aquelas acontecem por acaso ou por alguma obscura razão. Dito de outro modo, pergunta-se (tudo quanto vimos e quanto já sabemos leva-nos a supor que, desde a morte da mulher, muitas e muitas vezes se pôs essa questão) se o acaso ou a necessidade governam o mundo das coisas e o das pessoas.


Joaquin Phoenix está convencido de que há uma razão, que há uma necessidade em tudo quanto acontece. Para o provar, conta a seguinte e pasmosa história.


Uma noite, poucos anos antes, numa festa, conheceu uma rapariga boa como o melhor milho que é o pão quotidiano da vida dele. Com o somar das horas e com o somar dos copos, as coisas começam a correr-lhe bastante de feição. A certa altura, senta-se num sofá com a rapariga e repara no olhar cada vez mais lânguido dela, na respiração cada vez mais estremecente dela. Decide-se a beijá-la. Mas está a mascar uma pastilha elástica. Discretamente, vira a cara para o lado e atira a pastilha elástica para um cinzeiro. Volta a inclinar-se sobre a rapariga, cada vez mais ofegante. Nesse mesmo momento, ela desata a vomitar. Joaquin Phoenix enganara-se nos sinais. Nem os olhos de carneiro mal morto, nem a respiração de vitela saltitante significavam o que ele supusera, mas eram o efeito de copos a mais. E Joaquin Phoenix retirou a moral da história: se não fosse a pastilha elástica e os segundos que mediaram entre a intenção do beijo e a sua quase concretização, ele tinha apanhado com o vomitado todo na própria boca. Talvez esse episódio o marcasse para sempre, criando-lhe para o resto da vida irreprimível repulsa por beijos e mulheres. A pastilha elástica salvou-o. Deus existe.


O público ri muito com esta história grotesca e absurda. Mas Mel Gibson não ri e não se convence. E o exemplo que opõe ao do irmão é o da morte da mulher. Esta foi atropelada por um condutor bêbedo, que adormeceu ao volante. O carro que a atropelou quase a cortou ao meio, mas por um daqueles fenómenos que às vezes acontecem (já falei neste artigo de casos de algóstase) o próprio automóvel lhe prolonga um pouco a vida e a impede de sofrer muito. A polícia decide não retirar o carro até que o marido chegue e possa ainda trocar algumas palavras com a mulher. Mel Gibson chegou, foi reconhecido e a mulher dá-lhe alguns conselhos sobre os miúdos e o modo como ele terá de se ocupar deles. Depois, diz-lhe uma frase aparentemente despropositada: "Agarrem esse taco e atirem-no com toda a força." Depois morre.


Para Graham, a explicação da frase é a seguinte: como os dois irmãos foram basebolistas e a mulher gostava imenso de os ver jogar, ela teve uma alucinação. Viu-os, como antigamente, num desafio de basebol e deu um grito de apoiante como em tempos tantas vezes tinha dado. Nada a perceber, nada a interpretar. As últimas palavras da mulher não faziam qualquer sentido. Para ele, a partir desse dia também nada fazia sentido, o que se voltava a verificar nessa inverosímil situação do ataque extraterrestre.


3 - Alguns saberão que há um cineasta francês, chamado Robert Bresson, que morreu há pouco tempo, cuja obra é uma permanente variação sobre o tema do que acontece pela Graça de Deus ou do que acontece por puro acaso. Alguns saberão que a questão do primado da Graça ou do primado das obras para a salvação das almas se prolongou ao longo de séculos de questões teológicas, desde Pelágio e Santo Agostinho até às querelas entre jansenistas e jesuítas no século XVII. Um dos nomes relevantes nessa grande questão filosófica do século XVII foi Nicolas Malebranche (1638-1715), que sempre procurou conciliar o cartesianismo com o pensamento de Santo Agostinho e com a origem neoplatónica desse mesmo pensamento.


Numa das suas obras mais célebres - Entretiens sur la métaphysique et sur la religion (1688) -, Malebranche dá dois exemplos que não andam muito longe dos exemplos de Night Shyamalan.


Sublinhando o primado da Graça, recorda, como tantos dos seus predecessores, o caso de São Paulo, que, enquanto se chamava Saulo, perseguiu cristãos com sanha e crueldade desmedidas. Quando um dia, na estrada de Damasco, cavalgava a toda a brida para chegar a tempo de matar mais uns cristãos, ouviu distintamente a voz de Deus perguntar-lhe: "Saulo, Saulo, porque me persegues?" Houve um enorme clarão, o cavalo estacou apavorado, Saulo caiu da montada e perdeu os sentidos. Quando os recuperou, converteu-se e mudou o nome para Paulo. A questão é: se Deus se manifestasse desta forma a todos os mortais, a fé não seria coisa muito difícil de crer. Porque é que, entre tantos, São Paulo foi o escolhido, ele que aparentemente nada fizera para merecer tal Graça e tudo para a desmerecer? A única resposta vem do que não tem explicação: a Graça de Deus.


Mas Malebranche dá um outro exemplo mais comezinho: a certo nobre francês foi dito que, num baile dessa noite, determinada senhora, loucamente apaixonada por ele, estaria vestida de determinada maneira, para que ele a pudesse reconhecer. Assim aconteceu, vieram a casar e a ser pais de filhos ilustres. Só muito mais tarde, o homem descobriu que, na noite da festa, a sua apaixonada, à última hora, trocara de fato com uma amiga. O encontro não foi predestinado? O encontro foi casual? Ou exactamente o contrário? Aliás, para Malebranche, o que vulgarmente se chama "causas" são as ocasiões em que Deus age para produzir efeitos.


4 - No filme de Shyamalan, todos os sinais são ocasiões para produzir efeitos. Desde os enormes ciclos nas plantações de milho, até à água que a miúda se recusa a beber. Desde o livro ridículo sobre os extraterrestres até ao pobre ET que vemos no final, muito mais parecido com as criaturas dos anos 50, de Jack Arnold e de Eugene Lourié, do que com os sofisticados bonecos de Spielberg.


No final, Graham volta de novo a ser padre. Que aconteceu? Aconteceu que, na noite do combate com a tenebrosa criatura, que ele já sabia ser alérgica à madeira, os olhos lhe foram ter ao taco de basebol, pendurado numa parede. Nesse momento, ele percebeu que a última conversa da mulher não era uma recordação nostálgica do passado, mas uma visão premonitória do que estava para acontecer. E os dois irmãos, agarrando com toda a força o taco de basebal, conseguiram matar a criatura e salvar-se.


"Signs", filme de "suspense" e de extraterrestres, é igualmente um discurso sobre a Graça e sobre as obras, sobre o que Malebranche chamava a inteligível extensão. Não serve de nada dizê-lo a quem o sabe muito bem? Como escreveu Pascal: "Il vaudrait mieux le dire à ces autres personnes, dont vous parlez. Mais elles ne l'écouteraient pas." Cada vez mais a questão é essa, para Night Shyamalan ou para mim: a quem falamos e quem nos ouve? Quem nos ouve e a quem falamos?  

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