Fé e Razão em João Paulo II

João Carlos Espada
In: Expresso, 050410
Um Papa extraordinário.
Uma semana depois da morte de João Paulo II, já tudo foi dito sobre esse Papa extraordinário que conquistou o respeito e a admiração do mundo. Em modesta homenagem, permito-me apenas recordar um aspecto menos realçado: o combate intelectual de João Paulo II contra o niilismo contemporâneo.
Foi Karl Popper quem primeiro me chamou a atenção para o facto, à primeira vista inesperado, de ser o Papa uma das poucas vozes a defender a razão no mundo (pós) moderno que nos rodeia.
A mesma ideia tem sido realçada por George Weigel, o biógrafo norteamericano do Papa (Testemunho de Esperança, Bertrand, 2000). No seu estilo acutilante e divertido, George Weigel gosta de dizer que «Voltaire ficaria chocado com a ideia de que o Papa e a Igreja católica pudessem ser os defensores dos direitos humanos e da razão».
Contra a negação da verdade objectiva O tema foi particularmente crucial na Encíclica «Veritatis Splendor», de 1993, e foi retomado na Carta Encíclica «A Fé e a Razão», de 1998. Esta Encíclica afirma que «um dos dados mais salientes da nossa situação actual consiste na ‘crise de sentido’ (gerada por) esta dúvida radical que facilmente leva a um estado de cepticismo ou indiferença ou às diversas expressões de niilismo» (págs. 108-109). O niilismo caracteriza-se por uma «rejeição de qualquer fundamento e, simultaneamente, a negação de toda a verdade objectiva»(pág.120).
Quais são as consequências do niilismo? «Antes mesmo de estar em contraste com as exigências e os conteúdos próprios da palavra de Deus, (o niilismo) é a negação de toda a verdade objectiva... Deste modo, abre-se espaço à possibilidade de apagar, da face do homem, os traços que revelam a sua semelhança com Deus, conduzindo- o progressivamente a uma destrutiva ambição de poder ou ao desespero da solidão» (pág. 120). Este foi, em meu entender, precisamente o destino do niilismo germânico na viragem do século XIX para o XX: nas ruínas da razão e do sentido deixadas pelas investidas de Nietzsche e seus seguidores, cresceu o irracionalismo nacional-socialista, ou a ambição crua do poder nu.
Do racionalismo dogmático ao relativismo dogmático Mas donde surgiu, por sua vez, a investida niilista? Karl Popper pensava que ela surgira das debilidades próprias do racionalismo dogmático, do racionalismo excessivo - que Nietzsche detectara, caindo na filosofia do desespero. E Popper antecipara que, quando o racionalismo dogmático do marxismo caísse por terra, uma espécie de simbiose niilista entre Marx e Nietzsche passaria a ser o novo «ópio dos intelectuais», ou a nova «religião secular». Da confiança cega na certeza da Razão, passar-se-ia à certeza cega na impotência da razão.
João Paulo II não poupou «o espírito excessivamente racionalista de alguns pensadores». E recordou que «diversas formas de humanismo ateu... não tiveram medo de se apresentar como novas religiões, dando base a projectos que desembocaram, no plano político e social, em sistemas totalitários que foram traumáticos para a humanidade»(págs. 64- 65).
«Como consequência da crise do racionalismo», prossegue a Encíclica, «apareceu o niilismo. Enquanto filosofia do nada, consegue exercer um certo fascínio sobre os nossos contemporâneos...
Na interpretação niilista, a existência é somente uma oportunidade para sensações e experiências onde o efémero detém o primado» (págs. 65-66).
À beira do precipício.
Face ao niilismo, João Paulo II afirmou que «a necessidade de um alicerce para construir a existência pessoal e social faz-se sentir de maneira premente, principalmente quando se é obrigado a verificar o carácter fragmentário de propostas que elevam o efémero ao nível do valor, anulando assim a possibilidade de se alcançar o verdadeiro sentido da existência.
Deste modo, muitos arrastam a sua vida quase até à beira do precipício, sem saber o que os espera»(págs. 13-14).
Por isso, considerou «muito importante que, no contexto actual, alguns filósofos se façam promotores da descoberta do papel determinante da tradição para uma forma correcta de conhecimento. De facto, o recurso à tradição não é mera evocação do passado; constitui, sobretudo, o reconhecimento dum património cultural que pertence a toda a humanidade.
Poder-se-ia mesmo dizer que somos nós que pertencemos à tradição, e por isso não podemos dispor dela a nosso bel-prazer. É precisamente este enraizamento na tradição que hoje nos permite poder exprimir um pensamento original, novo e aberto ao futuro» (pág. 116).
No centro da mensagem papal parece estar precisamente o apelo a «recuperar quer a profunda tradição teológica... quer a tradição perene daquela filosofia que, pela sua real sabedoria, conseguiu superar as fronteiras do espaço e do tempo» (pág. 116).
Fé e Razão
Pessoalmente, entendo assim a mensagem do Papa: se a razão abdicar da arrogância fatal que a levou ao racionalismo dogmático e, a seguir, ao desespero niilista, ela pode e deve retomar a legítima ambição da busca, sempre inacabada, do bem e da verdade. Uma razão crítica como esta só pode trabalhar em diálogo com as tradições, designadamente com a tradição teológica e metafísica, e com as propostas da Fé, reconhecendo a autonomia mútua. Daqui renascerá «o ponto de encontro (ou o terreno comum de entendimento e diálogo, pág. 136) entre as culturas e a fé cristã, o espaço de entendimento entre crentes e não crentes » (pág .106). Mas, para que esse diálogo possa ter lugar, é indispensável que a filosofia se liberte do subjectivismo e relativismo desenfreados para onde é empurrada pelo niilismo, produto do fracasso merecido do racionalismo dogmático.

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