O célebre relatório Kissinger e a política internacional maltusiana

O célebre relatório Kissinger e a política internacional maltusiana

Mário Pinto

In: Público, 061023

1.No meu último artigo, interroguei-me acerca das razões pelas quais um crime tão repugnante como o aborto, condenado pela consciência da nossa cultura civilizacional desde há dois milénios, sem discordâncias a não ser por parte das grandes ideologias totalitárias do século XX (nazismo e comunismo), se tornou, de repente, e sem novas razões doutrinais nem científicas, como algo de, não apenas lícito, mas até pretendidamente direito fundamental da mulher (só da mulher), decorrente da propriedade do seu corpo.

2. E cheguei à conclusão de que haveria, sem dúvida, uma explicação na mudança de cultura e das mentalidades. Mas, visto que as mudanças culturais, mesmo no nosso tempo acelerado, são mais lentas do que tem sido a reviravolta (ou revolução) do aborto, procurei o concurso de algum factor catalisador. E achei que esse factor foi e é a política maltusiana do ocidente próspero e egoísta, relançada pelo célebre relatório Kissinger. Esta tese, que não é original, encontra confirmação em factos significativos indesmentíveis e nas próprias intenções da política internacional dos últimos anos.

3. Sobre a «política de cultura» incidente na mudança de mentalidade, ficará para outra ocasião. Aliás, vai decorrer na Fundação Gulbenkian, de 25 a 27 deste mês, inserido nas comemorações do seu 50ª aniversário, um Colóquio como talvez só a Gulbenkian nos pudesse proporcionar, cujo tema geral é: "Que valores para este tempo?". Na apresentação deste colóquio, um claro texto do saudoso Fernando Gil, datado de 14 de Dezembro passado, diz-nos que (e cito do programa da Conferência) "parece oportuno interrogar-nos sobre o que se pode chamar, sem exagero, uma crise geral do sentido. Ela acha-se declarada nas várias declinações da temática do "fim", (...) do fim do sujeito (ou até do homem), da verdade (não só da "metafísica" mas das próprias ciências), da história ou da beleza. É significativo que estes termos recubram os sistemas de valores sobre os quais o Ocidente se construiu, a partir da herança grega e cristã. Platão designou-os por Verdadeiro, Belo e Bem..." (fim de citação).

4. Hoje, trago aqui algumas notas sobre a influente política internacional maltusiana que, desde há uns anos, se desdobra num largo leque de poderosas actuações e financiamentos com vista a limitar a natalidade e a população. É esta política que, procurando cumplicidades, organizadamente fornece estratégias e financiamentos que são evidentes em movimentos e grupos ideológicos activos nos vários países e em instâncias supranacionais.

5. Nos últimos anos da Administração Nixon, primeiros anos setenta, foi elaborado um estudo do Departamento de Estado que identificou o crescimento da população mundial como "um assunto da máxima importância» para os EE.UU", porque esse crescimento nos países em vias de desenvolvimento punha em perigo designadamente o acesso aos minerais e a outras matérias primas indispensáveis, constituindo uma ameaça à segurança económica e política. Qual era a solução? O controlo da população. Esse estudo deu origem a um célebre memorando de Kissinger, e este, por sua vez, a um memorando executivo da Administração americana que lançou a política internacional na corrida ao controlo da natalidade e da população. Assim, a bomba K (política Kissinger) opunha-se à bomba P (aumento da população mundial). Estes documentos estiveram reservados durante vários anos, mas podem agora consultar-se livremente.

6. Muitas das afirmações do referido estudo são verdadeiras prédicas maltusianas. Prevê-se, por exemplo, que as necessidades das populações dos países do terceiro mundo relativamente aos recursos naturais mundiais "causarão graves problemas que poderiam afectar os EE. UU. Por causa da necessidade de aumentar o apoio financeiro aos países em vias de desenvolvimento...", em relação com tratados comerciais com preços mais elevados para as suas exportações. Em certa altura, o documento faz referência ao custo do financiamento do desenvolvimento económico e calcula que seria muito mais "efectivo" usar esse financiamento para fins de controlo populacional.

7. O estudo sugere que se tente converter as populações dos países em protagonistas dos planos de acção, assegurando-lhes o acesso às tecnologias da contracepção. E assinala que "conflitos que à primeira vista são políticos, na realidade têm raízes demográficas"; e que "as acções revolucionárias e os golpes contra-revolucionários terminam por expropriar os interesses estrangeiros (...) e não são bons nem para esses interesses nem para os países onde ocorrem".

Esta doutrina não foi inédita; foi sim um relançamento, mas desta vez com decisiva eficácia, da velha ideologia da segurança demográfica.

8. Direi que, de um ponto de vista de ética pessoal e social, penso que nada haveria a criticar se apenas se tratasse de apoiar uma respeitosa educação, e os meios que permitissem aos casais uma paternidade responsável. Porém, a política de restrição mundial da população pretendida pelo documento não se determina pelo desenvolvimento da responsabilidade pessoal e familiar; pretende sim, por razões de Estado, modificar os padrões sexuais e reprodutivos das pessoas e casais, diminuir o número de famílias, reduzir a dimensão das famílias, multiplicar o uso dos meios anticonceptivos e abortivos, dificultar a criação de filhos, aumentar a ocupação profissional das mulheres, em suma desligar a sexualidade da família e da procriação.

9. Esta política tem consciência de que rompe com as estruturas morais e éticas e não hesita em defender a ruptura das concepções de valores tradicionais. Não porque tenha uma concepção filosófica nova; mas porque só pretende, e a todo o custo, efeitos demográficos. E como a procriação tem que ver com os mecanismos da vida, essa política interesseira entra pelas questões das manipulações genéticas, sob um pretexto de "saúde reprodutiva".

10. A política maltusiana tem um aliado natural: a mentalidade irracionalista do hedonismo e do consumismo grosseiros. É como faca quente em manteiga. Para uma pretensa justificação, bastam slogans primitivos, com base em ideias primárias como a propriedade do corpo, um igualitarismo demagógico abstracto, o direito ao prazer sexual sem restrições, uma compaixão amoral das mulheres que abortam, uma comparação parola com os países ditos mais adiantados que já liberalizaram o aborto, etc.

11. Se algum dos meus leitores pensar que estou a ser injusto com as suas bem intencionadas concepções pessoais, dir-lhe-ei que não pretendo ofender nenhuma concepção séria, filosófica ou ética, em matéria de sexualidade ou procriação. Pelo contrário, estou disposto a dialogar respeitosamente com todas. Coisa diferente é a propaganda simplista e repetitiva com que todos os dias nos bombardeiam nos média. O que é necessário é levantar a suspeita das intenções das políticas de controlo internacional da natalidade e da população, que, por razões geoestratégicas egoístas, manipulam as opiniões e as mudanças legislativas. As tais que nos querem apresentar como exemplo de avanço e de progresso - atrasadinhos que nós somos... Professor Universitário

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