Dois conceitos de populismo

Expresso, 20080916
João Carlos Espada
jcespada@netcabo.pt

Por que razão nunca é a democracia liberal questionada nos países da anglo-esfera?
A indicação de Sarah Palin como candidata a vice-presidente gerou uma interessante discussão, nacional e internacional, sobre a natureza populista da escolha. Apoiei aqui essa escolha, na semana passada. Mas, agora, gostaria de sugerir uma distinção que me parece mais ampla e, pelo menos até certo ponto, independente da opinião que tenhamos sobre a candidata.
Consiste essa distinção nos diferentes entendimentos do conceito de ‘populismo’ que, em regra, podemos encontrar na Europa continental e no mundo de língua inglesa.
Para resumir uma longa história, julgo que a diferença é esta: na Europa continental, o populismo está e esteve geralmente associado ao questionamento do sistema político demo-liberal fundado no governo limitado e representativo. No mundo de língua inglesa, não há memória de populismos que ponham em causa o sistema demo-liberal.
Ronald Reagan foi, até certo ponto, o Presidente americano mais ‘populista’ das últimas décadas. O mesmo pode ser dito - e foi dito na altura - da primeira-ministra Margaret Thatcher. É certo que a extrema-esquerda os acusou de quererem subverter a democracia. Mas toda a gente sabe que nunca quiseram fazê-lo - ao passo que as credenciais democráticas da extrema-esquerda são obviamente inexistentes.
Por que razão os temas ‘populistas’ são abraçados por líderes constitucionais na chamada ‘anglo-esfera’ e, na Europa continental, são em regra deixados a partidos anticonstitucionais? Esta pergunta pode ser feita de outra maneira: por que razão nunca é a democracia liberal questionada nos países da anglo-esfera?
Uma resposta possível reside na hipótese de o entendimento da democracia liberal ser ligeiramente diferente nas duas culturas políticas. Na ‘anglo-esfera’, a democracia emerge como limitação do poder político por regras gerais que visam proteger os modos de vida realmente existentes. Na Europa continental, a democracia emerge associada a um projecto de mudança da sociedade e dos modos de vida realmente existentes.
No primeiro caso, os políticos vêem como um dos seus primeiros deveres a expressão na praça pública das preocupações dos seus eleitores. No segundo caso, os políticos são permanentemente desafiados a reiterarem a sua fidelidade a um projecto de sociedade, ou a um conjunto de valores e visões do mundo, que oficiosamente é identificado com a democracia.
Dir-se-á que a desvantagem da ‘anglo-esfera’ reside no aparecimento de líderes políticos que exprimem opiniões ‘bizarras’. Deve ser ripostado que a contrapartida reside em que as regras demo-liberais nunca são postas em causa - precisamente porque as pessoas comuns sentem que essas regras as deixam falar.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António