A NORMALIDADE DO PÂNICO

Diário de Notícias, 20080929

João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Apalavra mais usada na economia mundial é "pânico". O termo é adequado, mas a circunstância não é anormal. A presente crise nada tem de extraordinário. Como os furacões que assolam regularmente a costa americana, o susto da catástrofe é duro mas não deve gerar previsões drásticas ou medidas radicais. Enfrentado o tufão, reconstrói-se e regressa-se ao normal.A moeda é uma entidade única, de valor artificial. Simplesmente acreditamos que aquele papel vale o que diz. Já Aristóteles afirmava: "A moeda tornou-se, em virtude de uma convenção, um meio de troca para tudo o que nos faz falta... Ela é uma instituição, não natural, mas legal" (Ética a Nicómaco V, 5, 1133a.28-31). O dinheiro só vale enquanto dissermos que vale. Todos os bens ganham valor a partir da sua utilidade, mas a moeda, que não satisfaz directamente nenhum desejo humano, depende apenas da confiança que temos nela.Hoje quase toda a circulação monetária é bancária. Consideramos equivalente o dinheiro no bolso e o que movimentamos com cartões e cheques. Mas este, que em Portugal é 90% do total, depende da solidez do banco que o emite. Assim como a moeda, um banco apenas se aguenta enquanto os clientes acreditarem nele.A conclusão destes dois factos é que toda a actividade monetária e financeira depende essencialmente de um factor, a confiança. A divisa mais forte e o banco mais sólido desaparecem em minutos se deixarmos de acreditar neles. Ora a confiança é um bem muito volátil. Por maior que seja a sofisticação técnica e a análise económica, uma dúvida forte constitui vírus fatal para qualquer sistema financeiro.Esta é a razão das catástrofes que de tempos a tempos devastam a paisagem económica e, como os fogos na savana, ajudam a limpar o terreno. Eles nascem sempre de erros, imprudências, tolices. Mas é inevitável que por vezes tais deslizes aconteçam. E à medida que se alargam os mercados e aprofunda a inovação os riscos aumentam, a par das oportunidade e vantagens para o desenvolvimento.Infelizmente existe um fatal desequilíbrio na apreciação popular do sector. Quando os negócios prosperam, todos condenam os lucros astronómicos da banca, e ninguém diz que eles advêm da grande utilidade do crédito para a vida dos cidadãos. Chegada a crise, com perdas astronómicas (que os ganhos anteriores compensam), ninguém lamenta as vítimas bancárias, aliás acusadas da derrocada. Assim, corra bem ou mal, os financeiros saem mal. Afinal o devedor gosta do crédito, mas detesta pagá--lo. As finanças viverão sempre debaixo do desprezo da sociedade, que tanto ganha com a sua sofisticação.A presente crise, embora das mais fortes da história, é paralela a milhares de outras. A dimensão dos mercados envolvidos é impressionante, mas a situação até é benigna, comparada, por exemplo, com os desastres no Leste da Europa há 20 anos. Além disso, enfrentada pelas autoridades monetárias, têm-se evitado danos reais sérios. Aliás, a economia produtiva continua a crescer.A estratégia é difícil de aplicar mas fácil de definir: as instituições imprudentes são castigadas, acautelando sempre a sustentação do sistema. O banco central tem todos os instrumentos necessários para o garantir. Essas armas vão até à nacionalização temporária, aqui sem as implicações ideológicas do resto da economia. O Governo não está a dominar Wall Street. Apenas acalma os espíritos. É essencial evitar que dúvidas sobre bancos particulares passem para a moeda que todos usamos. Isso exige traçar uma linha controversa entre as instituições que podem falir e as que, por criarem contágio global, são consideradas grandes demais para morrer. Em ambos os casos, porém, os gestores e accionistas envolvidos devem perder. Entretanto, no mercado, quem mantiver a cabeça fria fica rico.A Bíblia, Alcorão, até Shakespeare avisam que devemos "nem credor nem devedor ser" (Hamlet, acto I, cena III). A sociedade do progresso e consumo eliminou o estigma negativo do crédito, mas estes episódios manifestam a sabedoria pragmática dos antigos.

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