CRISE E POLÍTICA

Diário de Notícias, 20081016
Maria José Nogueira Pinto
Jurista

É sabido que no meio de uma grande crise só conta quem manda. O cidadão comum quer ouvir algo que o tranquilize e só o tranquilizam decisões, não meras opiniões. Por isso, nas crises, conta o Governo e, nesta, conta Sócrates, que pediu o debate parlamentar da passada semana, transformando-o na sua verdadeira rentrée política.Valeu a pena ver e ouvir este debate para entender muito do que se passa com o sistema político português. Tendo como pano de fundo uma crise financeira com contornos perigosamente inovadores, de escala global e um efeito de baralho de cartas - em contraste flagrante com temas reduzidamente circunscritos a quase coisa nenhuma, como o do casamento gay -, Sócrates aproveitou a onda, qual bom surfista, vendo aqui a grande oportunidade de redireccionar o debate político, a agenda política, as prioridades políticas. Neste estado de necessidade, assente em factos mas também muito em factores psicológicos, quem vai lembrar-se do passado recente da governação de Sócrates, dos péssimos indicadores sociais, do desemprego, da contestação de rua, das meias reformas, do Estado vulnerável, dos camionistas, da insegurança, das maleitas da justiça?Sabendo tudo isto, foi fácil ao primeiro-ministo marcar o tom: responsabilidade, rigor, sentido de Estado, interesse público, capacidade de decisão. E como nós, portugueses, gostamos disso, de um chefe, firme e seguro, bastando-nos, até, que apenas o pareça!A receita habitual provou de novo: alguns números encorajadores, um pacote de medidas salvíficas, garantias de Estado e ideologia quanto baste. Ficámos a saber que a nossa economia continua a crescer, que a nossa inflação é a segunda mais baixa da Zona Euro, que ao contrário de outros não entrámos em recessão e o nosso deficit será de um mágico 2,2%.Ninguém contestou. As medidas tocaram nos pontos sensíveis das pequenas e médias empresas e das famílias e a pincelada ideológica foi dada em forma de ralhete, à direita que defende o Estado minímo, e à esquerda que defende o Estado obeso.Ele, Sócrates, há muito que sabe qual é o fiel da balança. A partir daqui o cerco e o circo estavam montados. A direita ficou entalada entre o medo de mostrar falta de solidariedade institucional num momento particularmente grave (sabendo que parte do seu eleitorado ouviu o que queria ouvir da boca de Sócrates) e as suas próprias contradições internas, resultantes de uma governação de triste e recente memória; a esquerda afundou-se na sua algaraviada ideológica, ela própria uma contradição pegada e historicamente demonstrada.Após a intervenção de Paulo Rangel, o único que conseguiu criar a dúvida razoável sobre o pacote de medidas apresentado pelo Governo, irritando profundamente Sócrates, entrou-se numa espécie de one man show que ia tirando do saco, ora a capa cartonada da "menina das trancinhas" que continha o Orçamento de 2005, ora as actas do congresso do PCP. A pretexto da crise, Sócrates mudou as perguntas cuja resposta já sabíamos e não deu respostas às perguntas que lhe foram feitas. A pretexto da crise, Sócrates explicou, como um mestre-escola paciente perante a burrice dos alunos, que as medidas são as dele porque o Governo é dele, o Orçamento é dele, as prioridades são dele e o País é dele.Não deixa de ser irónico que esta crise do sistema financeiro à escala mundial, que tem parte da sua origem na morte generalizada da política, do seu pensamento e da sua prática, vá servir para anular o pouco debate político-partidário que ainda esperávamos ver neste tempo pré-eleitoral. Irónico e perverso.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António