Progresso e bom senso

PROGRESSO E BOM SENSO

Diário de Notícias, 20081020
João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

O progresso humano põe em acção forças poderosas. Mas o fascínio com a novidade faz esquecer que essas energias podem ser terrivelmente devastadoras. Não é apenas na crise financeira que este paradoxo é evidente.

A Internet é indiscutivelmente um dos instrumentos mais benéficos e produtivos da nossa era. Mas, vendo o trabalho impressionante em sites, blogs, mensagens, circulares e apresentações de powerpoint, temos de perguntar se tudo isso será feito apenas nas horas vagas. Pelo contrário, múltiplos sinais indicam que, numa miríade de escritórios e repartições, grande quantidade de funcionários passa o tempo a brincar na Net em vez de trabalhar. Tudo na máquina do patrão e com electricidade paga por ele. Empenhados em causas de direitos humanos ou simplesmente divulgando anedotas, distribuindo fotografias de arte, insultando políticos ou conversando nas redes sociais, não restam dúvidas de que os computadores são causa de enormes perdas de produtividade em múltiplos sectores.

Mesmo esquecendo estes abusos flagrantes (e sem falar das infâmias nos sites de jogo, pornografia, calúnia, vírus ou spam) muitos ganhos aparentes das novas técnicas são altamente discutíveis. Ninguém duvida das enormes facilidades no acesso à informação; mas nas manipulações as melhorias são bastante duvidosas. Por exemplo, quando hoje se prepara uma apresentação pública, qualquer que seja a finalidade, a concepção do discurso passou a ser uma parte mínima da tarefa. Depois de saber o que há a dizer, começa então o trabalho verdadeiramente árduo. Vão perder-se muitas horas a acertar o tipo de letra, conceber animações, escolher fotografias, cores e designs para os slides. O contributo desses requintes na compreensão da mensagem é mínimo, se não mesmo negativo. Mas tais futilidades são hoje exigências indispensáveis.

Quando a lei se envolve no caso multiplicam-se os ganhos duvidosos do progresso. A cidade de Nova Iorque, desde o início do ano, e agora todo o estado da Califórnia são pioneiros na exigência da menção do número de calorias em todos os alimentos à venda nos restaurantes, até à simples torradinha de aperitivo. Ninguém duvida da importância dos cuidados dietéticos, mas uma imposição destas, genérica e forçada, não é progresso. É puro disparate. Qualquer que seja o ponto de vista, aparece como um exagero fanático. Poucos beneficiarão realmente desta enxurrada informativa, mesmo que se sintam mais confortados com os dados fornecidos. Entretanto o preço da refeição aumenta, para não falar dos impostos que pagam o exército de fiscais que a regulamentação impõe. E em breve haverá novas exigências.

Loucura semelhante vê-se na segurança dos aeroportos. Após o atentado falhado de 10 de Agosto de 2006, a União Europeia impôs novas regras: "Os passageiros não estão autorizados a transportar líquidos na sua bagagem de cabina, salvo os contidos em recipientes individuais de capacidade não superior a 100 ml ou equivalente (100g/3 Oz), acondicionados num saco de plástico fechado, transparente e que possa ser aberto e fechado de novo, de capacidade não superior a 1 litro por passageiro. Como referência o saco não pode exceder as dimensões de 19cm x 20cm" (ver www.inac.pt, "Informações ao Passageiro"). A simples leitura mostra o delírio. Onde se viu as autoridades arrogarem-se a definição do tipo de saquinho? Tal ridículo seria intolerável na nossa democracia em qualquer assunto exterior à obsessão do momento.

Pior ainda, a utilidade destes caprichos é altamente discutível. Que segurança trazem tais requintes? A medida ainda teria alguma lógica se apenas existissem explosivos líquidos. Como está, ela só cria incómodos sem impedir um terrorista empenhado. Enquanto os fiscais se encarniçam sobre os desodorizantes dos turistas, o verdadeiro assassino pode passar dinamite ou C-4 dissimulado numa pasta de documentos. Se um dia os bombistas usarem malas detonadoras passará a ser proibido usar bagagem?

Infelizmente, o progresso não faz crescer o bom senso.

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