"Volta, companheiro Vasco, que estás perdoado!"


PÚBLICO, 21.10.2008, Helena Matos

O Eixo Norte-Sul cria uma catarata em dias de chuva que inunda em segundos os prédios que ficam por baixo

É tempo de fazermos justiça ao general Vasco Gonçalves. Ele foi provavelmente o único homem que, sentado na cadeira de primeiro-ministro em Portugal, acreditou que, quando dizia que o país ia ser socialista, tal propósito era mesmo para ser levado à letra. Nacionalizou quanto pôde, defendeu ao limite o colectivismo e por essa via teria entusiasticamente prosseguido, não fosse ele e o seu fervor comicieiro terem-se tornado obviamente dispensáveis em Setembro de 1975, quando o país já podia arrumar a revolução e as violas no saco. Em África, já estava repartido o que havia a repartir e, por cá, os verdadeiros protagonistas preparavam-se para outros jogos de poder, onde Vasco Gonçalves não só já não era necessário como muito menos tinham lugar o misto de candura e destravamento que o caracterizavam. Talvez por nunca lhe terem perdoado os embaraços que tal ingenuidade lhes criara, quando o general e antigo primeiro-ministro morreu nem o Governo de então nem a classe política se fizeram representar condignamente no seu funeral. Mas nunca é tarde para se reparar uma injustiça. E nós ainda vamos a tempo de remendar o muito que asneámos quando dissemos mal de Vasco Gonçalves e da sua revolução socialista. Essa revolução tinha o bendito mérito de ser socialista os 365 dias do ano, sem esquecer a excepção dos bissextos. Ora, o que nos tem vindo a acontecer desde que, em Setembro de 1975, virámos as costas à muralha de aço de Vasco Gonçalves, é que, como empregados ou empresários, trabalhamos cada vez mais para sustentar um Estado que gasta como se fosse socialista, cresce como se fosse socialista e, por isso, precisa cada vez mais que alguns milhões de portugueses façam figura de parvos, trabalhando como se o país fosse capitalista e o enriquecimento resultante do trabalho não fosse cada vez mais uma impossibilidade técnica. Afinal, o que Vasco Gonçalves nunca percebeu é que sem o sonho capitalista de enriquecer não existe dinheiro para fazer socialismo e muito menos para fazer medrar dirigentes socialistas. Logo, ao contrário do que o general acreditava, acabar com a iniciativa privada seria um erro crasso. (Quem o percebeu notavelmente foram alguns militantes destacados do PCP que se transferiram de tácticas e estratégias para o PS.)
Nesta versão local das teses chinesas "de um país, dois sistemas", os cidadãos, ao contrário do que acontecia nos países socialistas, não esperam nada do Estado e muito menos o confrontam com os seus erros e responsabilidades, como supostamente acontece no capitalismo. Por exemplo, se as opções de Vasco Gonçalves tivessem saído vitoriosas, hoje muitos portugueses estariam indignados porque uma obra pública, o Eixo Norte-Sul, foi projectado de forma que, ao passar em viaduto, num lugar chamado Sete Rios, cria uma catarata em dias de chuva, inundando em segundos os prédios que ficam por baixo. Talvez alguns dos hóspedes do Jardim Zoológico se sintam mais em casa ao ver aquela Niagara lusitana, mas feita essa zoológica excepção não se percebe como pode aquilo acontecer. Infelizmente, Portugal não se tornou um país socialista segundo o modelo Vasco Gonçalves. Logo neste país em que, dos dois sistemas, nos sai sempre o pior de cada um, ninguém vai querer ouvir falar deste assunto, embora por diversas razões. Os contribuintes já sabem que, caso a obra seja corrigida, isso lhes vai custar dinheiro. Acrescenta-se a este facto que empresa privada alguma que tenha estado envolvida nesta ou noutra obra pública jamais abrirá a boca para explicar o que quer que seja. Tal como não deixam que o seu nome saia na lista dos credores do Estado ou na daqueles que patrocinaram o estudo do novo aeroporto, não vá o Governo irritar-se com a ousadia, as empresas também contam que o Governo feche os olhos a muita coisa, seja essa muita coisa o crescimento exponencial dos orçamentos das obras ou os erros de que estas enfermam. De igual modo, os inundados também não pedem responsabilidades porque temem que tal lhes prejudique o seu objectivo de alterarem a sua relação com o estado socialista, trocando, graças à aquífera circunstância, o seu estatuto de contribuintes pelo de protegidos ou assistencializados: uma casinha da câmara, mais um apoio da junta, quiçá uma permuta de terreno para mudar o local do negócio... Acima de tudo isto, paira a nomenklatura. Nuns dias o Governo declara-se direcção comercial de luxo, noutros aprova projectos PIN ou mega-obras públicas. Às vezes, a nomenklatura protagoniza o salvamento do país de catástrofes mundiais, sendo que, nos últimos anos, já perdi o conto a tanto salvamento: foi a gripe das aves, as alterações de clima, a falta de combustíveis, a falta de alimentos, a praga da obesidade, os lucros obscenos dos bancos e a falência dos mesmos. Nos dias em que a nomenklatura desce à terrinha, anuncia que o "Governo dá" computadores, subsídios e vai provocar choques tecnológicos ou culturais. Tudo isto, já de si, é irritante, mas o pior é que é muito caro.

Até meados de Junho de 2008, os portugueses trabalharam apenas para pagar impostos. A cada ano que passa, trabalham mais dias para sustentar o seu Estado. Em 2009, a despesa estatal vai continuar a aumentar e muito provavelmente o dia 16 de Junho já não será aquele em que finalmente os portugueses podem dizer de si para si que já deram tudo o que tinham a dar ao Estado nesse ano. Com o socialismo a tornar-se-nos cada vez mais pesado, o sonho de cada português é tornar-se mais um protegido ou, enquanto tal não acontece, que o deixem em paz, uma vez cumpridos todos os requisitos da máquina estatal. Se não fosse a morte ter tornado esse pedido impossível acho que terminava esta crónica escrevendo: "Volta, companheiro Vasco, que estás perdoado!". O socialista que ele foi fazia de nós opositores. Os actuais transformam-nos em contribuintes faltosos ou, caso tenhamos conseguido o milagre de ter tudo pago, licenciado e devidamente aprovado, em cidadãos pouco solidários. Jornalista (helenafmatos@hotmail.com)

- Quando José Sócrates resolveu reenquadrar a relação do Governo com os sindicatos, foram revelados alguns dados, não muitos, mas os suficientes, para que a opinião pública percebesse que os sindicatos e respectivos dirigentes são uma extensão da administração pública e por ela devidamente sustentada. "Os 450 professores que estão destacados nos sindicatos representam uma despesa anual superior a oito milhões de euros. No ano lectivo passado, estavam destacados 1327 docentes (...), que custavam por ano 20 milhões de euros, segundo estimativas do Governo", informava, em 2006, a agência Lusa. As coisas são como são e a verdade é que os sindicatos não só dependem das verbas estatais como ainda a sua agenda está longe de coincidir com a defesa da qualidade e da transparência dos serviços prestados por esses trabalhadores. Isto não tira nem acrescenta razão às reivindicações dos sindicatos em matéria de contagens de tempo de serviço, avaliações de desempenho... mas, em determinados momentos, o seu silêncio sobre assuntos não corporativos torna-se assombroso. Por exemplo, os sindicatos dos professores não deviam ter sido os primeiros a condenar as patéticas figuras a que os professores são sujeitos nas acções de formação do Magalhães? Tal como no passado nunca se ouviu sindicato algum denunciar os crimes cometidos na Casa Pia, tal como foi difícil que os sindicatos apoiassem os professores e os funcionários vítimas de violência nas escolas - porque isso implicava admitir a existência de problemas muito sérios nesse microcosmos da ideologia estatizante tão cara aos sindicatos que são as escolas públicas - também agora não foi por eles que a denúncia e a indignação chegaram. É pena.

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