O dom divino da simpatia

Diário de Notícias, 20081103

João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

A arte tem a finalidade de penetrar a vida, atingir a realidade, esboçar a verdade. O terrível e paradoxal século XX não só chacinou multidões, cindiu o átomo, chegou à Lua, como levou a arte aos extremos. No próximo sábado passa o 30.º aniversário da morte de um dos artistas que melhor captaram essa época incompreensível.

Norman Perceval Rockwell nasceu em Nova Iorque a 3 de Fevereiro de 1894, no mesmo ano de Nikita Khrushchev e da garrafa de Coca-Cola. O jovem cedo revelou um talento inigualável. As suas pinturas a óleo são impossíveis de distinguir de fotografias, de tal modo o traço é realista. Na era em que a máquina atingiu a reprodução perfeita, a arte desafiou-a. Durante 60 anos, sobretudo na capa do Saturday Evening Post, as imagens de Rockwell inspiraram a nação marcante do século.

O verdadeiro génio do autor estava, porém, na capacidade de numa única imagem sem legenda captar um momento inspirador, comovente, humorístico. Basta ver o grupinho desesperado de três rapazes seminus a correr, passando por cartaz Proibido Nadar, para entender o que aconteceu (No Swimming, Post 4/Jun/1921). O sorriso esfuziante da rapariga de tranças com um olho negro e a roupa desalinhada sentada à porta do Director não necessitava de explicações. (The Shiner, Post 23/Mai/1953). É genial o contraste das caras dos seis elementos da família (e cão) no carro, à partida e chegada de uma saída dominical, na canseira do divertimento (The Outing, Post 30/Ago/1947).

Enquanto o médico velhote escutava atentamente com o estetoscópio o peito da boneca que a menina preocupada tem na mão (Doctor and Doll, Post 9/Mar/1929), vivia-se a terrível euforia bolsista que iria deflagrar na grande depressão. As capas de Rockwell traduziram assim o clima destes e outros dramáticos acontecimentos. Guerras, recessões, conflitos sociais, tudo passava pelo pincel do autor, mas sublimado através da sua alma. O pequeno soldado de costas, estático, diante do prédio em cujas portas e janelas tanta gente manifesta a alegria transbordante de o ver, regista para a sempre a emoção do regresso da guerra (Homecoming GI, Post 26/Mai/1945).

A suprema desilusão está retratada na cara do menino que descobriu a roupa do Pai Natal na gaveta da cómoda (Bottom Drawer, Post 29/Dez/1956). Como são inexprimíveis as faces dos dois rapazolas que olham espantados, por cima da mesa, para a avó e neto que rezam fervorosamente antes de comer no restaurante de viajantes (Saying Grace, Post 24/Nov/1951).

Algumas imagens são simplesmente inesquecíveis. As Quatro Liberdades, inspiradas pelo discurso de Roosevelt de 1941 onde explicava as razões da entrada na guerra, publicadas no Post em 1943, tornaram-se emblemas do verdadeiro sonho americano. A frágil menina negra, escoltada por enormes homens com braçadeiras da polícia, dos quais nem se vê a cabeça, é um símbolo definitivo da luta pelos direitos civis (The Problem We All Live with, Look, 1964).

O mundo da arte nunca respeitou Rockwell por ser apenas um ilustrador. Artistas oficiais, incapazes de reproduzir o rigor fotográfico da sua pintura, olhavam com desprezo os seus quadros nas capas de revistas. Criticavam-no porque a América que ele retratava -honesta, ingénua, benevolente, alegre- simplesmente não existia. Claro que não! Chama-se a isso arte. O objectivo não é descrever. É inspirar. Desprezavam-no porque, como desenhador pago, não ter liberdade artística, forçado a acomodar-se às exigências dos patrocinadores e, como Miguel Ângelo ou Rubens, Mozart e Haydn, servir um patrono.

Nada ultrapassa o orgulho do rapaz que contempla a sua namorada, vestidos ambos a rigor para o baile, enquanto o homem do bar cheira deliciado a enorme flor que ela tem no vestido (After the Prom, Post, 25/Mai/1957). A maior parte dos artistas do século XX dedicaram-se a contemplar o demónio. Era fácil vê-lo então. No meio do horror, Rockwell preferiu ver Deus. Procurou-o num dos locais onde Ele gosta mais de estar: o próximo, através do dom divino da simpatia.

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