Sócrates e a mentira

Público, 01.11.2008
Eduardo Cintra Torres
ect@netecabo.pt

Nos últimos dois anos, surgiu de rompante, como nunca antes na vida portuguesa - em discursos, intervenções comentários e manifestações, em cartazes e artigos, em prosa e em versos satíricos -, o importantíssimo tema da verdade na política e nos media. Fala o poder verdade, mente ou, como diz o eufemismo de outros políticos, diz "não-verdades"? O tema é melindroso. Está nos códigos, porque não há vida humana organizada sem que a verdade seja a regra. Mas a mentira faz parte da vida e o mundo também não poderia existir sem ela. A latitude da mentira aceitável varia.A política em democracia é um caso sério neste domínio. Pressupõe uma relação de verdade entre representantes e representados. Nos sistemas jurídicos dos regimes em que a democracia está mais arreigada na sociedade - como a Grã-Bretanha e os EUA - mentir ou prestar falso testemunho é da máxima gravidade e já levou ao fim de muitas vidas políticas. A reflexão sobre a mentira na política é tão antiga quanto a própria reflexão política. O primeiro a defender a mentira como política de Estado é Sócrates. Ele combate a democracia e envolve-se num golpe para a derrubar e estabelecer um governo oligárquico, o que leva ao seu julgamento e ao exílio de Platão. O regime idealizado por Sócrates é uma oligarquia do tipo Big Brother da alegoria de Orwell. Sócrates defende a censura e a mentira. Num passo célebre da República, defende que a mentira deve ser um "remédio" exclusivo dos chefes do regime, os cidadãos "não devem tocar-lhe". Se "a alguém compete mentir, é aos chefes da cidade, por causa dos inimigos ou dos cidadãos, para benefício da cidade; todas as restantes pessoas não devem provar deste recurso" e merecem castigo.Outro pensador que defende a mentira de Estado é Maquiavel. No seu manual de política, sublinha a importância de enganar a maioria ou os adversários pela mentira, pela astúcia, pela quebra da palavra dada. O político só precisa de saber "ocultar este pendor, disfarçá-lo bem". A mentira, escreve no Príncipe, é necessária porque a minoria no poder não tem outra forma de enganar a maioria.A defesa da mentira política acentua-se no período barroco, mas a palavra mentira é substituída pelos conceitos de "simulação", e "dissimulação" e pelo "mascaramento" do discurso. Um autor italiano do século XVII, Giustio Linzio, responde no seu tratado de Política que a simulação e a dissimulação só devem ser banidas da vida privada mas "não da pública, que de outro modo não pode fazer quem tenha nas mãos toda a república". Outro autor da época, abertamente antidemocrático, Thomas Hobbes, prefere a monarquia porque, entre outras razões, na democracia as decisões políticas não poderiam ser escondidas.Todavia, a dissimulação e o segredo continuam a ser essenciais ao poder, mesmo em democracia. Daí à "legitimidade" da mentira política vai um passo, como referia Norberto Bobbio em 1999 na sua Teoria Geral da Política. O cientista social Gabriel Tarde, escrevendo nas primeiras décadas da democracia francesa com sufrágio universal, considera que a mentira, embora sendo um cimento da vida social, deve ser banida da política: "É sobretudo dos homens públicos, dos governantes, que se deve exigir esta rigidez dos princípios" porque ela "a única verdadeira garantia dos governados contra a possibilidade dos crimes" desses governantes, "a maior parte impunes." Para este jurista e criminologista, a mentira num político torna-se "criminosa" (Civilização e Mentira, 1890).Como a ditadura e a democracia se devem distinguir pelo uso ou não do segredo, como refere Elias Canetti, os governantes em democracia tentam iludir o poder da pergunta ora respondendo demais ora complicando, evitam a resposta concisa, pois esta tornaria difícil a "dissimulação convincente" (Multidão e Poder, 1960). Daí a necessidade de o poder ocupar todo o espaço discursivo da democracia, de fazer da sua agenda a única, sufocando a oposição e a sociedade civil, incluindo os media livres. Em paralelo com a ocultação, o poder em democracia recorre assim a outra forma de enganar a maioria: o "mascaramento" da linguagem, para ocultar o pensamento; "essa ocultação pode ocorrer de duas maneiras: ou utilizando uma linguagem para iniciados, esotérica, compreensível apenas para aqueles que pertencem ao seu círculo, ou então usando a linguagem comum para dizer o oposto daquilo que você pensa ou para dar informações erradas ou justificativas distorcidas" (Bobbio).O engano dos cidadãos pela governação culmina na opacidade do aparelho político-administrativo e da sua acção: como afirma o sociólogo Erik Neveu, "as políticas públicas são verdadeiros instrumentos de opacidade. Funcionam para os profanos na penumbra do regateio entre grupos com siglas misteriosas" e "suscitam um sentimento de incompreensão e de opacidade das opções. Perguntas na aparência tão simples como 'quem decidiu?'. 'como?', 'quando?', 'porquê?', transformam-se em enigmas" (Sociologia dos Movimentos Sociais, 2000).Posto isto, compreende-se que o funcionamento do sistema político da democracia não resolve problemas que são, aparentemente, inerentes ao poder. Daí a importância primordial da imprensa e da sua liberdade. Não é demais citar a este propósito a famosa frase de um político invulgar, ao nome do qual a maioria dos políticos treme - Thomas Jefferson: "Sendo a opinião do povo a base do nosso governo, o primeiríssimo objectivo deveria ser manter isso bem; e se eu tivesse de decidir entre termos um governo sem jornais ou jornais sem um governo, eu não hesitaria por um momento em preferir a segunda" (carta a Edward Carrington, 1787). Cabe aos media representar a voz crítica da "opinião do povo" a respeito do governo. O mesmo Jefferson escreve a George Washington em 1792 que "nenhum governo deveria existir" sem crítica e que "onde a imprensa é livre, nenhum alguma vez existirá" sem ela. É por isso com a maior perplexidade que vejo a enorme, por vezes total, submissão de alguns jornalistas e media portugueses perante o poder executivo e o poder económico. Submissão à agenda, aos interesses gerais e concretos do poder. Macaqueiam-se em vários media as mesmas ideias saídas do palácio do santo poder. Ocultam-se informações e notícias desfavoráveís ao poder. Cede-se aos telefonemas -que não são pressões, são "démarches". Chega-se a defender a bondade da actual crise para o poder, apesar dos custos humanos que infligirá sobre a população; como se a crise fosse parte dum jogo político. Chega-se também a defender a retórica de dissimulação e engano por parte do poder, patamar mínimo da mentira, com base em que é preciso ser "optimista" para animar e galvanizar o estúpido do povo (e dos seus próprios leitores e ouvintes). Trata-se da subversão total da missão do jornalismo. A missão do jornalismo é informar o que acontece à vista e revelar as dissimulações e os enganos, e nunca colaborar com a mentira dos "chefes da cidade" defendida por Sócrates contra os cidadãos.Churchill, outro nome que anda na boca de tantos, tem uma concepção contrária à da mentira, do "optimismo" e das "notícias positivas" quando diz aos compatriotas em 13 de Maio de 1940: "Nada tenho para oferecer senão sangue, trabalhos, lágrimas e suor".

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