Um sonho do dr. Mário Soares

Público, 17.12.2008, Rui Ramos

O PS arranjou uma maioria absoluta e os ingredientes necessários para uma mexicanização duradoura do regime

Depois de três anos de sondagens de opinião, sempre com o PS muito à frente, eis uma interpretação possível do estado actual da política portuguesa: estamos todos a viver um sonho de Mário Soares. O dr. Soares terá tido o sonho pela primeira vez em 1976, e era assim: o seu Partido Socialista, em vez da ala esquerda de um sistema de dois partidos ou blocos de partidos que alternassem no governo, funcionaria como a união nacional da democracia, a "charneira" de toda a sensatez e de todos os interesses, e portanto o eixo permanente do governo e do Estado. À sua direita e à sua esquerda ficariam acantonadas algumas correntes minoritárias, úteis para a pluralidade do regime, mas impróprias para exercer o poder.
Mário Soares teve o sonho, mas não o viveu no seu tempo de liderança partidária. Com ele, o PS foi o partido mais votado em três das cinco eleições parlamentares realizadas entre 1975 e 1983. Mais: ao princípio, foi o único partido a contar mais de dois milhões de votos (em 1975 e 1983) e o único verdadeiramente nacional, com votação em todo o país, perante um PSD e um CDS confinados ao Norte e um PCP contido no Sul. Num país dividido, só o PS parecia poder governar - isto é, proceder aos ajustamentos necessários para liquidar o défice do PREC e contornar a rigidez das suas leis - sem provocar uma guerra civil. Constava ainda, além disso, ser o único com os números de telefone dos governantes europeus - e americanos.
Mas os partidos à direita e à esquerda do PS expandiram-se eleitoralmente, as finanças do Estado das nacionalizações exigiram sempre cuidados intensivos, a adesão à CEE demorou, e o dr. Soares teve de passar, para governar, por alianças complicadas. Pior: o sonho do PS esbarrou logo noutro, o do presidencialismo militar. O general Eanes despediu o PS do poder em 1978, provocou a divisão da sua liderança em 1980, retirou-lhe quase metade do eleitorado em 1985, e foi a razão pela qual o próprio Mário Soares, em 1987, preferiu arriscar uma vitória de Cavaco Silva a ver o PS regressar ao governo na dependência de eanistas e comunistas.
Do fracasso do sonho de Mário Soares nasceu uma ilusão: a do PSD, que se julgou, nas décadas de 1980 e de 1990, o "partido natural do governo", ou pelo menos o pólo dominante de uma bipolarização. Frágil fantasia de dominância, que teve de ser passada à sombra presidencial do dr. Soares e que começou a desfazer-se na década de 1990, quando Guterres aproveitou as marés do anticavaquismo e da terceira via, e que, perante o colapso guterrista, acabou entre 2002 e 2005, com essa prova magistral de irrelevância que foi o Governo PSD-CDS.
Em 2005, subitamente, José Sócrates começou a viver o sonho de Mário Soares. O PS não só arranjou finalmente uma maioria absoluta, mas todos os ingredientes necessários para uma mexicanização duradoura do regime. Para começar, uma grande tarefa nacional: a viabilização do Estado social, contra uma direita que é suposto desejar abolir o sistema e uma esquerda que o deixaria falir. Depois, concorrentes feitos à medida para o fazer brilhar por contraste: direitas sem projectos, reduzidas ao núcleo duro do eleitorado conservador, e esquerdas com um eleitorado inflacionado, mas sem nada para lhe oferecer senão saudades de vários líderes soviéticos (Lenine, Trotsky, Estaline, etc.). Finalmente, um Estado que já não manipula juros ou câmbios, mas que é o maior de todos os tempos em Portugal, com uma despesa equivalente a 48 por cento do PNB, e autoridades para "regular" tudo o que mexe e não mexe.
Podemos escapar deste sonho? Durante muito tempo, alguns julgaram que o despertar se chamaria "crise" e "contestação social". Mas os grupos profissionais em fúria têm servido para os ministros parecerem determinados e acima de corporativismos. E a "crise mundial", além de soltar o Governo do garrote do velho PEC, criou uma "origem externa" das dificuldades, e sobretudo deixou em confusão ainda maior as oposições de direita e de esquerda: uma passou a ter medo de ser "liberal", e a outra julgou que já podia outra vez ser "marxista" como em 1975.
Há ainda quem confie em despertadores como o Presidente da República ou como Manuel Alegre. Temos assim a comemoração regular de todas as dúvidas constitucionais de um e de todos os abraços a Louçã do outro. Mas o Presidente precisa de ser reeleito, e a Alegre talvez ocorra, entre dois versos ou dois tiros de caça, que o fim do sonho do dr. Soares não seria necessariamente o começo do dele. Há mais alguma coisa para nos fazer acordar? Talvez não seja coisa boa, porque de sonhos destes nunca se sai bem.

Historiador

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