Lutar por essa palavra proibida: vitória

Público, 05.01.2009, José Manuel Fernandes

O mundo está cheio de "guerras congeladas" e de Estados que apodrecem sob vigilância da ONU porque demasiados conflitos terminaram em impasses. Só que no Médio Oriente, e sobretudo em Israel, ainda se conhece bem o que significa uma vitória ou uma derrota
Há uns anos a esta parte que há uma palavra proibida no léxico militar europeu: vitória.
Há uns anos que, sempre que se abre um conflito, a primeira coisa que os diplomatas exigem é "o imediato cessar-fogo".
E há uns anos que assistimos ao apodrecer das situações, com conflitos latentes sem solução, a multiplicação de "forças de manutenção da paz" e outros instrumentos mais ou menos aceites por todos.
Não é preciso sairmos da Europa para percebermos do que estamos a falar. Basta ir até aos Balcãs e contar quantos soldados sob a bandeira das Nações Unidas estão ainda no Kosovo, em Chipre (um país-membro da União Europeia) e na Geórgia. Podemos ainda acrescentar algumas missões directas da UE, como a que continua a assegurar que a Bósnia-Herzegovina é um Estado, quando não passa de uma ficção, e a NATO já esteve directamente envolvida quer na Bósnia, quer no Kosovo.
À escala global, de acordo com números de Novembro de 2008, havia um total de 89.845 militares, paramilitares e polícias nas 16 missões de peacekeeping das Nações Unidas, sendo boa parte delas tudo menos efectivas. Há, por exemplo, uma missão na fronteira entre a Índia e o Paquistão, mas se algum dia estes países se envolverem num conflito sério - hipótese terrível -, essas tropas pouco mais deverão fazer do que assistir, como os militares holandeses ao serviço das Nações Unidas assistiram ao massacre de Srebrenica, na Bósnia em 1995. Contudo, esta "força" está naquela fronteira desde 1949. Exacto: há 60 anos.
Boa parte destas situações foi criada e mantida com base numa terrível ilusão: a de que tudo se pode resolver pela diplomacia, apesar de se saber há milénios que a diplomacia sem o apoio de uma ameaça militar credível raras vezes levou a algum lugar. Pior: hoje acredita-se que não existe solução militar para todo e qualquer conflito, apesar de a história da humanidade e de o século XX provarem o contrário, umas vezes para o bem, outras para o mal.
Ontem, em editorial, o El País sintetizava esta ideia da seguinte forma e a propósito de um hipotético desejo de uma "vitória absoluta", "definitiva", de Israel no actual conflito: "O problema reside em que ninguém jamais conseguiu uma vitória absoluta sem renunciar ao seu lugar entre as nações civilizadas." Ora sucede que este pressuposto, apesar de apelativo, não resiste à mais elementar prova dos factos. Aprecie-se ou não, a verdade é que uma paz duradoira muitas vezes só foi possível porque se conseguiram vitórias absolutas e, naquilo que podemos tomar por definitivo, vitórias definitivas.
Lembremo-nos, por exemplo, do que se passou nas duas guerras mundiais do século passado. Na primeira não houve propriamente um bloco derrotado, antes uma Alemanha que, sem nunca ter travado uma batalha no interior do seu território, percebeu que nunca poderia ganhar a guerra, sobretudo depois de a máquina industrial dos Estados Unidos se ter junto aos Aliados. A vitória nem foi absoluta nem definitiva, foi a paz que veio a seguir que criou as condições para uma guerra ainda pior. Já na II Guerra nenhuma das potências aliadas exigia menos do que a rendição incondicional de Berlim e, depois, de Tóquio. Sabe-se a que preço, mas também se sabe o que pode resultar da paz que depois se construiu.
No Médio Oriente o problema é mais difícil, pois começa por não se saber o que significa realmente uma "vitória absoluta", pois a única que podemos designar como tal - a vitória de Israel na Guerra dos Seis Dias, em 1967, foi tão "absoluta" que dela nasceram os grandes problemas com que hoje nos defrontamos. A do Yom Kippur, em 1973, quando Israel enfrentou forças muitíssimo superiores e esteve realmente em perigo, não foi tão "absoluta" mas já permitiu os acordos de paz, que têm durado, com o Egipto e a Jordânia. Todas as guerras a seguir (as do Líbano, as duas Intifadas) entraram numa nova categoria: a de guerras assimétricas, não convencionais, onde começa por ser muito difícil definir o que é uma vitória "absoluta". Mas todas obrigaram Israel a começar a resolver alguns dos problemas que criou depois de 1967 e, ao mesmo tempo, a tomar medidas, algumas delas muito criticadas internacionalmente, mas que propiciaram níveis de segurança mais elevados aos seus cidadãos. Apesar de o Hezbollah não estar hoje mais fraco do que em 2006, os seus mísseis deixaram de cair na Galileia, apesar das controvérsias em torno das barreiras de separação na Cisjordânia, o número de ataques suicidas caiu dramaticamente.Mas havia Gaza, o território devolvido aos palestinianos e de onde o Hamas expulsou a Fatah, o território de onde começaram as partir os ataques com mísseis cada vez mais sofisticados. Não em Dezembro passado, mas de forma regular pelo menos desde 2006. Daí a intervenção militar cujo objectivo é, como ontem reafirmou o secretário-geral do Governo israelita, "a paragem completa de tiros de rockets, o fim do armamento do Hamas e uma vida normal para os cidadãos do Sul de Israel". Como consegui-lo? Pela única forma conhecida pelo adversário, isto é, pela força. Força desproporcionada? O El País devia então começar por criticar o manual adoptado pelas Forças Armadas de Espanha: "O princípio da proporcionalidade (...) baseia-se no reconhecimento de que é difícil limitar os efeitos das armas modernas e os métodos da guerra apenas a objectivos militares e que é provável que eles causem danos colaterais a civis." Quem já esteve em Gaza, olha para o número de operações e regista o número de vítimas civis só pode considerar que o Exército israelita tem actuado com determinação mas também com muito cuidado e precisão. Porque sabe, como Amos Oz escrevia há dias no PÚBLICO, que "para o Hamas, se morrerem israelitas inocentes, isso é bom; se morrerem palestinianos inocentes, é ainda melhor". E porque não baniu do seu léxico a palavra vitória, pois sabe muito bem o que representaria uma derrota.

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