A meio de mais uma década perdida

Público, 14.01.2009, José Manuel Fernandes

É terrível perceber que nos pediram sacrifícios e que eles de pouco serviram. É pior saber, lendo o relatório de uma agência de notação financeira internacional, que estamos a viver mais uma década perdida, e não por causa da desculpa da moda, a crise internacional, mas sim dos erros que cometemos

Custa muito. Mas estava escrito nas estrelas e já tinha sido previsto. Mas sem a autoridade de ser sublinhado num relatório da agência de notação financeira Standard & Poor's. Uma das que, pelas suas análises, contribuem para saber se Portugal tem de pagar mais ou menos juros pela dívida que carrega às costas.
Ontem ficámos mal no retrato. Porquê? Porque essa agência avaliou as reformas estruturais feitas pelo Governo e considerou-as insuficientes. Pior: disse que não conseguiriam corrigir os desequilíbrios da economia, previu que Portugal terá uns cinco anos de crescimento anémico e que a marca de glória de José Sócrates tem pés de barros: o equilíbrio das contas públicas está de novo em causa.
Metendo a cabeça na areia, um responsável do Ministério das Finanças disse que tal "alerta decorre da crise mundial, sem precedentes, que estamos a viver". Não é verdade. E felizmente que não é verdade: se todos os nossos males decorressem da crise financeira internacional só podíamos fazer como aquele responsável - fingir que não é nada connosco e esperar que passasse. Até porque, com sorte, pensariam os mais cegos, Obama acabaria por salvar-nos. A nós e ao resto do mundo.
Só que nem a Standard & Poor's refere a crise internacional entre as razões que a levam a colocar Portugal entre os países que é necessário vigiar pois pode deixar de conseguir cumprir com os compromissos das suas dívidas, nem quem olha sem lentes distorcidas para a nossa realidade pode acreditar que todos os males vêm de fora.
Na verdade, mesmo sem a autoridade dos especialistas da Standard & Poor's, escreveu-se neste espaço a 7 de Julho do ano passado (antes da grande implosão dos mercados financeiros), que os resultados esperados das reformas que tinham passado por pedir muitos sacrifícios aos portugueses não estavam a chegar. Ou, citando: "os sinais de recuperação da economia nunca chegaram a ser vigorosos e o que no início foi sendo aceite como sacrifícios inevitáveis começou a ser pior compreendido"; "o discurso da autoridade e da luta contra as iniquidades deu lugar a uma mistura de arrogância tonitruante e de cedências mal explicadas"; o que permitia que se fosse "instalando o pior dos sentimentos: o de que se fizera sacrifícios para nada ou muito pouco".
Ora é exactamente isso que a Standard & Poor's veio ontem dizer que sucedeu. Apertámos o cinto mas não temos uma situação orçamental sólida. Lançaram-se programas de reformas, mas os males da nossa economia não foram corrigidos. E cite-se agora a agência de rating sobre a persistência das nossas mazelas: "défice externo superior a 10 por cento do PIB, que mais tarde ou mais cedo terá de ser corrigido", "falta de competitividade das empresas, que torna necessária uma redução dos salários reais" e "pouca diversificação das exportações, que tornam o país mais vulnerável face a uma redução da procura".
Custa mesmo muito passar pelo que se passou para estar onde se está. O que exige que se faça a pergunta que ninguém quer fazer: o que correu mal?

Ora a resposta, curta e grossa, é que vivemos um embuste que, apesar de todos os esforços de propaganda, começa a surgir lentamente aos olhos dos portugueses.
Com algumas excepções - caso da reforma da Segurança Social, que mesmo assim podia ter ido mais longe do que foi -, o problema do nosso famoso défice não foi resolvido, pois tudo indica que vai regressar em todo o seu esplendor. Na aparência diminuiu, mas isso aconteceu sobretudo porque pagamos hoje mais impostos, nos reformamos mais tarde e o Estado cortou drasticamente no investimento público, amealhando para este ano eleitoral. O resto, ou boa parte do resto, ficou lá, mas escondido debaixo do tapete. O famoso défice da saúde para os hospitais-empresa e, quando estes não pagam aos fornecedores, tudo segue directamente para a contabilidade da dívida. O mesmo se está a passar nas empresas públicas que, como segunda-feira se soube após uma auditoria do Tribunal de Contas, já acumulam uma dívida equivalente a 11 por cento do produto interno bruto. Anteciparam-se receitas através de esquemas manhosos, como sucedeu na prorrogação dos prazos de concessão das barragens. Fizeram-se despesas que terão de ser pagas pelos nossos filhos e netos, como acontece com as Scut. E até se conseguiu o "milagre" de deixar de gastar dinheiro na rede rodoviária e passar a receber receita.
Agora, que a crise internacional expôs a fragilidade da nossa economia e os limites das reformas do "grande chefe reformista", há sinais de que se está a perder o norte e, também, o pudor. A notícia dada ontem pelo Jornal de Negócios de que o ministro das Obras Púbicas, Mário Lino, enviou uma circular a todas as empresas sob a sua tutela, e até a empresas privadas cotadas em bolsa, como a Portugal Telecom, para que o informassem de todas as inaugurações ou anúncios para deles fazer uma festa da propaganda é apenas uma pequena parte da ponta do icebergue e a confirmação da notícia que demos em Dezembro sobre a utilização pelo Governo das empresas e dos seus orçamentos para acções em que o protagonismo é dos ministros ou mesmo do primeiro-ministro. E a insistência despudorada na dispensa de concurso público para obras até cinco milhões de euros (a França fez o mesmo mas colocou o tecto nos... 20 mil euros) mostra que começa a valer tudo menos arrancar olhos.
Tudo isto custa mesmo muito. Sobretudo porque o que a Standard & Poor's nos disse ao prever um crescimento anémico para os próximos cinco anos foi que estamos apenas a meio de mais uma década perdida.

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