Fritzl e o inimaginável aqui ao lado. Ou em cada ser humano

Público, 20.03.2009, José Manuel Fernandes

O que perturba no caso de Fritzl não é o lado monstruoso do crime, é sabermos que o lado sombrio da natureza humana se manifesta onde menos se espera e que dominar o mal é uma batalha sem fim

"Fritzl existia na literatura antes de existir na vida real", escreveu Ritchie Robertson no Times Literary Supplement em Maio de 2008, como recorda nesta edição do PÚBLICO (P2, págs. 4 e 5) Kathleen Gomes. Robertson chegava a essa conclusão após recordar as dezenas de romances austríacos que, desde o século XIX, soam como antecedentes.
É difícil dizer se tem razão, ou mesmo se existe um específico "mal austríaco" que ajude a perceber o caso de Josef Fritzl, o homem ontem condenado a prisão perpétua por ter sequestrado, violado e escravizado uma filha, tudo isto numa cave construída no seu jardim e sem que nenhum dos vizinhos tivesse notado qualquer anomalia no seu comportamento. Nenhum dos vizinhos nem a própria mulher, que "adoptou" os seus netos e filhos do marido como uma esposa bondosa que não suspeita de nada nem se interroga sobre nada.
O caso, pelos seus contornos macabros, concentrou as atenções do mundo e permitiu as mais diferentes especulações sobre a natureza daquele homem, sobre as anormalidades da aborrecida e previsível Áustria, também sobre os lados mais sombrios da natureza humana. Mas é muito provável que não possamos nem fazer qualquer generalização extensível à comunidade em que vivia, nem que o possamos tratar como uma aberração de que nos livraremos internando-o, até que morra, numa instituição psiquiátrica.
Joseph Fritzl é porventura apenas mais uma manifestação de como algo que vemos como o mal absoluto pode conviver com um comportamento social banal, ou surgir numa pessoa que facilmente se diria incapaz de incomodar uma banal mosca. O que mostra como é difícil, até errado, procurar explicações racionais para o que deriva de uma irracionalidade que nos escapa.
Estes dias deram-nos alguns exemplos de como o lado sombrio da natureza humana pode facilmente levar o mais pacato e normal dos seres humanos a tornar-se inumano.
Primeiro exemplo: o caso da escola de Barqueiros, em Barcelos. Aquela turma que, de repente, incendiou paixões não começou a funcionar a semana passada, funcionava há meses num anexo do estabelecimento de ensino, algo não muito diferente de um contentor, e durante todo esse tempo centenas, senão milhares, de habitantes da região viveram bem com essa situação sem, aparentemente, se lhes levantar qualquer dúvida sobre aquela opção. Mesmo admitindo que ela estava correcta, a indiferença, mais do que a cumplicidade ou o acordo, mostram-
-nos como é fácil preferirmos o sossego a inquietarmo-nos com algo que se passa a nosso lado mas preferimos desconhecer. Não será muito grave, mas é um exemplo de como, quando se escolhe ignorar, se pode terminar na indiferença dos polacos que viviam em Auschwitz e sempre preferiram fingir que o cheiro a carne queimada não empestava o ar que respiravam.
Segundo exemplo: o do jovem que, na Alemanha, matou quase duas dezenas de pessoas e disse estar a fazê-lo "por prazer". Mais um de muitos outros casos semelhantes, e mais um a suceder na Europa onde, teoricamente, o "mal" não pode ser atribuído, com ligeireza e demagogia, a uma causa única seguindo a batuta desse triste propagandista egocêntrico que dá pelo nome de Michael Moore. Na Europa, jurava-se, não era possível Bowling for Columbine. Na Europa não se vendem armas automáticas. Na Europa não somos cowboys. Mentira. Na Europa somos seres humanos, como nos EUA ou nos confins de África, e aquilo que muitas vezes separa o cidadão exemplar do criminoso é uma linha quase invisível.
Terceiro exemplo: o caso de Kathy Soliah/Sara Jane, a extremista californiana da década de 1970 que se tornou numa mãe e cidadã exemplar do Minnesota antes de ser descoberta e condenada a uma pena de prisão por um crime cometido nos tempos em que queria exterminar os "insectos fascistas" dos Estados Unidos. "Éramos jovens, éramos tolos", diz hoje. Mas infelizmente o seu grupo deixou atrás de si um rasto de sangue. E isso não é apenas uma tolice: é um crime racionalmente justificado em nome de dogmas ideológicos, os mais perigosos de todos, pois tornam justa e justificável qualquer inumanidade que sirva "a causa".

Por tudo o que sabemos e não sabemos sobre a nossa natureza e a importância dos valores culturais e morais para a dominarem é que surpreende a forma defensiva, justificativa e negacionista como Portugal reagiu ao relatório sobre os abusos nas nossas prisões e esquadras. Parece que vivemos no melhor dos mundos. Garantem-nos que todos os abusos foram punidos, mas não explicam por que deram um prazo para que os bastões de basebol e as mocas desaparecessem das salas de interrogatório ou por que continuam a dificultar o acesso dos detidos ao seu advogado, como acaba de suceder com Mário Machado. Não que este seja figura recomendável, mas o Estado, ao detê-lo e, depois, negar-lhe direitos previstos na lei, mostrou como é fácil abusar do poder e tornar-se ainda menos recomendável. Porque o skinhead é mediático, os presos que os inspectores do Conselho da Europa encontraram feridos nalgumas cadeias estão mais indefesos porque são anónimos e não conhecem os seus direitos.
Fritzl levou a inumanidade aos limites da monstruosidade. A maioria apenas pisa o risco mas nunca saberemos quantos, tendo a oportunidade e o estímulo, não o cruzariam e também abusariam sem o menor peso na consciência.

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