Brincar com coisas sérias

Maria José Nogueira Pinto

DN20090625

O Instituto Português da Juventude - que ainda hoje não sei ao certo para que serve - teve uma ideia: realizar testes de sida nas escolas, contemplando com este "brinde" alunos entre os 12 e os 25 anos.

Fiquei estupefacta com a notícia desta iniciativa e assaltaram-me várias dúvidas. Qual o papel do Ministério da Saúde? Financiar o projecto? Então este projecto, claramente de saúde, com objectivos de prevenção da sida, envolvendo rastreios, só tem a chancela de um instituto público fora da sua tutela? Para além do ridículo da inversão dos papéis - o Ministério paga um projecto alheio que devia ser próprio e o Instituto executa um projecto próprio para o qual não tem nem vocação nem competência - os riscos são evidentes. A quem reportam os técnicos de saúde? Quem assume a responsabilidade pelos resultados? Quem assegura uma resposta imediata para os jovens cujo teste seja positivo? Quem averigua da legalidade ou ilegalidade da ministração de testes a menores? Quem assume, e com que direito, uma acção altamente intrusiva no poder paternal?

O mais extraordinário, porém, é considerar que uma criança com doze anos pode receber, sozinha, a notícia de que tem sida. Que nesse momento em que o chão lhe fugirá debaixo dos pés, a única garantia que lhe dão é que nenhum ombro paterno, nenhum colo materno, estarão à sua espera. Em contrapartida asseguram-lhe a confidencialidade. E o que pode significar a confidencialidade numa situação destas, se não o ficar perdido e só no seu labirinto?

Por motivos da minha vida profissional estive no primeiro embate desta doença devastadora e para a qual ninguém parecia preparado, nem os doentes, nem os profissionais de saúde, nem a sociedade em geral. Recordo-me das primeiras medidas tomadas no Banco de Sangue da instituição que dirigia; das conversas lancinantes com dadores contaminados, dos primeiros casos de doença, da criação de uma pequena equipa pluridisciplinar para os apoiar naquela revelação inicial; daquilo que era, então, uma sentença de morte. Lembro, particularmente, o olhar vazio de uma prostituta, do seu longo silêncio enquanto, com a melhor das intenções, lhe explicávamos a necessidade de exigir ao "cliente" o uso do preservativo, e da sua expressão amarga - aquela coisa da sida era apenas mais uma na sua vida de usura e violência - quando, antes de se ir embora, murmurou "eu tenho é de trabalhar". Recordo- -me também de ver no hospital de Ca-xias um grupo de doentes, espectros ambulantes à espera da morte, auxilian- do-se mutuamente durante as longas horas nocturnas em que não havia nem médico nem enfermeiro por falta de recursos.

A doença não foi considerada de declaração obrigatória e sabíamos que cada um que passava a porta estava perdido para nós, para o sistema de saúde, para tudo. Aquilo parecia-me demencial, que não fosse possível referenciar estes casos, encaminhá-los para estabelecimentos onde pudessem ser atendidos segundo o estado da arte que era, na época, ainda rudimentar. Mas não. Mais importante que declarar a doença e cuidar dos doentes, era impedir a descriminação. Devo reconhecer que as primeiras reacções foram assustadoras, como se tivéssemos recuado a uma idade das trevas, a uma peste negra, a um salve-se quem puder, parecendo legitimar atitudes discriminatórias totalmente irracionais.

A doença passou a ser declarada, mas havia já um enorme prejuízo acumulado: a ocultação agravara a ignorância e uma cultura de indiferença face a algo que se acreditava só acontecer aos "outros". Há alguns anos, um inquérito nacional revelava que a maioria dos portugueses acreditava que a sida se contagiava através de um aperto de mão. Mas a ocultação dificultou, também, um conhecimento da real situação da doença e dos doentes em Portugal e, por isso, a adopção de políticas eficazes.

Parece que o IPJ veio dar uma mãozinha: confusão, leviandade, correcção política e zelo pré-eleitoral. Uma brincadeira de mau gosto.

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