O fim da picada

DN 20090610

Vasco Graça Moura

Se as coisas se passaram assim, e eu gostaria de não ter de sair do plano da hipótese, então o caso é de extrema gravidade

Não advogo há perto de 25 anos. Todavia, no ano 2000, por ocasião de uma discussão parlamentar, em Bruxelas, sobre o sigilo profissional no foro, tive ocasião de invocar a posição da Ordem dos Advogados que oportu- namente me tinha sido transmitida pelo então bastonário Dr. António Pires de Lima. O texto da minha intervenção encontra-se a págs. 98/99 do livro Anotações Europeias que publiquei na Bertrand em 2008. Cito-o apenas para referir que a posição da Ordem era, a tal respeito, extremamente clara e podia sintetizar-se nos cinco pontos seguintes:

1. O segredo profissional constitui pedra angular e pressuposto da profissão de advogado.

2. O advogado que seja arguido de autoria ou cumplicidade em prática criminosa é passível de perseguição como qualquer outro cidadão.

3. A nenhum advogado pode impor-se a declaração ou denúncia de factos cujo conhecimento resulte do exercício da sua actividade.

4. Ao advogado é proibido tudo o que não se paute pelo estrito respeito da legalidade.

5. A Ordem dos Advogados tem autoridade decisiva e última em matéria de sigilo profissional, cabendo ao respectivo órgão autorizar, ou não, a revelação de factos por solicitação da Autoridade Judiciária.

Acontece que a comunicação social noticiou no passado fim-de-semana que, na sequência de diligências de investigação, um advogado, associado de um conhecido escritório forense de Lisboa, tinha sido constituído arguido para "fins instrumentais". Há uma relação essencial entre aqueles cinco pontos e a correlativa protecção de que devem gozar os documentos confiados ao advogado pelo seu cliente. E, se é certo que podem ser accionados mecanismos judiciais para obtenção desses documentos no caso em que,retê-los signifique desrespeito da legalidade por parte do advogado, também é certo que é absolutamente inadmissível o que os noticiários dizem ter acontecido.

Com efeito, de "arguido para fins instrumentais" parece decorrer que o Ministério Público, não tendo qualquer suspeita contra o referido advogado, nem podendo acusá-lo de nada, decidira apesar disso constituí-lo arguido de modo a poder devassar-lhe o escritório à sua vontade e aí apreender documentos supostamente relacionados com a matéria da investigação e que o advogado, obrigado à defesa e protecção do seu cliente, legitimamente, se terá recusado a entregar.

Se as coisas se passaram assim, e eu gostaria de não ter de sair do plano da mera hipótese de raciocínio, então o caso é de extrema gravidade.

A figura da constituição de alguém como arguido, muito em especial um advogado, com meros fins instrumentais numa investigação criminal não existe, que eu saiba, em nenhum Estado de Direito do mundo! A constituição de um advogado como arguido, apenas com o fim confesso de o seu escritório poder ser devassado, sempre seria uma patente e indignante fraude à lei, uma simulação processual grosseira (provavelmente um crime) e uma violação ainda mais grosseira de elementares garantias e direitos individuais e profissionais.

No momento em que escrevo, domingo 7 de Junho, não vi ainda reacções da e na comunicação social quanto a estes aspectos. Antes a complacência imediata parece ter sido a regra, talvez por se tratar de um caso conexo com eventuais aspectos criminais do caso BPP e o arresto cautelar de contas bancárias (que só pode ser aplaudido pelos inúmeros depositantes lesados), tudo isto levando à aceitação implícita daquilo que é absolutamente inaceitável, isto é, que o fim justifica os meios.

Oxalá essas reacções apareçam até à publicação deste artigo. É imperativo que surja sem demora um esclarecimento formal e cabal do Ministério Público sobre esta questão.

E se acaso não surgir?

Não sei o que é que a Ordem dos Advogados, o procurador-geral da República, as organizações da magistratura portuguesa, o ministro da Justiça, o primeiro-ministro e o Governo, a Assembleia da República e a sua comissão de direitos liberdades e garantias, enfim, o Presidente da República, vão fazer. Mas terão de fazer alguma coisa e muito depressa.

Porque, se as coisas se passaram assim, então o Estado de Direito em Portugal chegou ao "fim da picada".

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