DEUS É MISERICORDIOSO

António Bagão Félix

Público, 20091024

Não sou apreciador da escrita de José Saramago, mas não desconsidero a sua obra literária.

Como autor e cidadão, José Saramago tem todo o direito de exprimir as suas ideias sobre tudo e mais alguma coisa.

E, naturalmente, de expressar com clareza, frontalidade e liberdade o seu ateísmo militante. Seja nos seus livros, seja nos seus ditos.

Mas para se ser respeitado nas suas opiniões, é preciso ter-se a inteligência, a razoabilidade e a prudência de se dar ao respeito.

Uma coisa é Saramago defender o seu pensamento livre. Outra é o modo como o faz. Com acidez, arrogância, intolerância e sectarismo extremos.

Pretensamente auto-dotado de uma superioridade intelectual e moral desde que foi galardoado com o Nobel acha-se pateticamente acima dos outros. Por isso, não argumenta, agride. Não opina, sentencia. Não confronta, insulta. Não esclarece, obscurece. Não convoca, provoca. Não fundamenta, opta pelo fundamentalismo.

O curioso é que, depois de tudo o que diz e escreve com a liberdade de que, aliás, felizmente dispõe, estranha as posições de quem o confronta. Nada que me espante, sabendo-se do modo como tratava os “delitos de opinião”, por exemplo, quando foi director de um jornal…

José Saramago é um paradoxo: é religiosamente anti-religioso. O seu proselitismo é a expressão de uma nova moda religiosa: o ateísmo pretensamente humanista.

Saramago acaba de editar mais um livro e aproveita a ocasião para um diktat gratuito tão ao seu gosto pessoal. A Deus tudo culpa, a Deus chama tudo o que de mal possa haver, ao mesmo tempo que diz não existir. Em que ficamos?

A Bíblia, para ele, é um manual de maus costumes e um catálogo de crueldades, num recorrente certificado de menoridade antropológica do próprio homem. Não percebe que a Bíblia (e sobretudo o Antigo Testamento) é também a história da condição humana feita de luz e de sombras, do bem e do mal que coexistem por conta da liberdade humana. Deus não nos fez robots. Logo a seguir a Caim e Abel, Deus diz “Meu espírito não se responsabilizará indefinidamente pelo homem” (Génesis 6,3).

Saramago olha para a Bíblia e interpreta-a rudemente à letra, sem contextualização, como se estivesse a ser escrita agora. Só lhe falta um Deus a comunicar por telemóvel.

Saramago odeia visceral e mefistofelicamente a ideia de Deus e dos Livros Sagrados. Está no seu direito. Mas revê-se no estalinismo, nos seus gulags e pogroms, para ele, por certo, ícones dos bons costumes e das boas práticas.

Saramago é um incompreendido. Nega um Deus (que, apesar de não existir, é a causa de todos os males…) que, todavia, não é capaz de esquecer. Deus não existe mas não lhe sai do pensamento. Estranho, não é? À conta deste pesadelo, decreta impositivamente um atestado de quase insanidade sobre os que, para si incompreensivelmente, crêem em Deus. Saramago procura chamar à realidade milhões e milhões de pessoas que, ao longo dos tempos, vivem nas trevas, sem inteligência e discernimento, manipuladas por um Deus menor. Cautelosamente, o Deus menor da Bíblia que não o do Corão …

Enquanto católico, não sou nem mais nem menos pessoa do que Saramago. Mas tenho o direito à defesa dos valores em que acredito. Não me revejo nos arautos da atitude política e religiosamente correcta que, com calculista “respeitinho” pelo Nobel, se remetem a uma espécie de coligação do silêncio. Como também não perfilho a ideia da indiferença ou da contrafacção da religião. A fé é um acto de liberdade porque sem liberdade não haveria qualquer mérito em crer.

Que esta polémica de puro marketing tenha pelo menos a vantagem de levar mais cristãos a ler ou reler a Bíblia. Só por isso agradeço a Saramago.

Quanto ao resto, a publicidade não é uma medida divina. Deus é misericordioso e perdoa a Saramago.

António Bagão Félix

Outubro de 2009

Comentários

Passaro Azul disse…
Formidável este texto.
Revejo-me inteiramente nas suas
palavras.
Felicito-o por as ter escrito e publicado neste espaço.
"Que Deus ilumine Saramago".
Um abraço para si.
Unknown disse…
Belíssimos comentários !

Como católico também subscrevo na integra as suas palavras.

Dou graças a DEUS por termos ainda entre nós individualidades que preservam OS MAIS NOBRES VALORES.

Que DEUS o abençoe caro Dr. Bagão Félix.

Um abraço desde Leiria até onde se encontre.

Nuno
espacodasletras disse…
"Pai perdoa-o que ele nao sabe o que faz..."
Ponderei cerca de 2 segundos se devia contribuir para divulgar ainda mais a recente obra do escritor saramago "Caím" que muita polémica gera à sua volta e sim vejo-me obrigada a fazê-lo, por não pretender que a minha opinião fique sem ser ouvida.
Acho inadmissível que a sua inspiração resulte num puro e grosseiro desvirtuar daquele que é o Livro mais importante de toda a história da humanidade, saiba-se pela sua antiguidade e transversalidade. Uma obra que atravessa épocas, pessoas, famílias e terras.
A julgar pela capa escolhida apercebemo-nos logo das suas intenções baixas e do oportunismo com que saramago escreveu este seu conto.
E porque o julgam alvo de inquisição? Porque não está a Igreja a ser alvo de difamação, ou os cristãos? Admiro a forma como remodelam a realidade, em especial a comunicação social, pois como é sabido nunca foi moda estar do lado da igreja, dos católicos, ou dos cristãos.
Acima de tudo existe uma tremenda falta de respeito por milhões de pessoas, que merecem ver as suas crenças e valores dignificados e não ridicularizados pelas palavras tão "nóbeis" como: "O Deus da Bíblia é rancoroso, vingativo e má pessoa... O Deus da Bíblia não é de fiar" ou então por declarações proferidas como:" a bíblia é um manual de maus costumes, é um livro cheio de crueldade, violência" enfim...
Ah, saramago escrevo-o com letra minúscula subentendam porquê...
Unknown disse…
Para quê perder tempo ?
Saramago é só um homem ... pelos vistos pequeno, mais pequeno do que parece.
Deus é Deus ... tem Saramago na palma da mão e olha para ele com "bonomia" ...

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