O problema

Público, 2010-02-04 Helena Matos

O círculo de Sócrates a que o PS parece estar reduzido leninizou-se no que respeita às técnicas de destruição dos opositores


O Mário Crespo é psicótico. A Manuela Moura Guedes, além de desequilibrada, é ainda várias outras coisas que invariavelmente são as mulheres quando não se comportam com o recato e a simpatia discreta que a irmandade misógina do discurso igualitário lhes exige. José António Saraiva tem um parafuso a menos. José Manuel Fernandes delira e Eduardo Cintra Torres padece de obsessões. A lista não se restringe a jornalistas. Por isso Marcelo Rebelo de Sousa também não está nada bem. Para Medina Carreira, sugere-se o internamento e Campos e Cunha em poucas horas passou de ministro a pessoa extenuada e esgotada, obviamente incapaz de acompanhar o ritmo dinâmico que o executivo se propunha imprimir ao país através da construção do TGV de que Campos e Cunha ousara discordar.

Este paradigma soviético-psiquiátrico de reacção àqueles que contrariam o Governo, e sobretudo levantam questões de fundo em relação a José Sócrates, tem-se acentuado nas últimas semanas. Numa recente entrevista ao jornal Libération, o primeiro-ministro português parecia um governante de um país da desaparecida "cortina de ferro". Estes últimos, das raras vezes que, nas visitas ao estrangeiro, eram confrontados com questões menos simpáticas, manifestavam vigorosamente as suas dúvidas acerca dos números e dos factos que davam um retrato menos positivo do sistema soviético. Mas, conhecedores da importância que os jornalistas ocidentais tinham na credibilização do seu regime, acabavam a convidá-los para irem "conhecer a realidade" daqueles países. Tal como esses pretéritos soviéticos, José Sócrates começa nesta entrevista por descredibilizar as agências de rating (anglo-saxonnes, explicava o Libération com aquela incomensurável desconfiança que os franceses têm por tudo o que seja "anglo"). E acaba a convidá-las a virem conhecer a realidade portuguesa, como se não estivéssemos em Portugal, em 2010, mas sim na Roménia dos anos 70 do século passado.

O círculo de Sócrates a que o PS parece estar reduzido leninizou-se no que respeita às técnicas de destruição dos opositores. É gente que sabe como é importante manter o povo sempre ocupado com o combate ao reaccionarismo. A carteira pode estar vazia mas nós estamos a progredir porque mudamos os comportamentos por decreto. E o decreto pode estar mal feito mas isso também não interessa porque a seguir virá outra proposta de outro decreto que igualmente vai separar os puros dos impuros. E nas polémicas nem lhes falta uma legião de compagnons de route dispostos a contar aquele detalhe que definitivamente enterra os que enfrentaram o líder. Lembram-se da velha história do escritor que divergiu do PCP e que era bom escritor, homem culto, talentoso, mas...? Aqui chegados, havia sempre alguém que deixava cair o "mas" para depois rematar dizendo que o problema era o escritor ter falado quando fora detido pela PIDE. O escritor, que de facto existiu, levou anos e anos a explicar que nunca falara na PIDE pela prosaica razão de que nunca fora detido por ela. Ironicamente, nem os compagnons de route que inventaram a história ou a PIDE que efectivamente usou a tortura nos interrogatórios saíam mal deste caso. O escritor, esse, é que se sentia na necessidade de dar explicações. É assim que nós estamos.

O problema agora é que o jornalista que escreveu aquelas coisas é um bom jornalista mas o que pretende é promover o seu livro, mudar de local de trabalho ou ganhar mais. Enfim, há sempre um problema, não é? E, assim, quase sem darmos por isso, acabamos a discutir os interesses obscuros dos doidos. E não discutimos o que devíamos discutir. E nós temos, de facto, um enorme problema chamado José Sócrates. Alguém que, apesar de ser primeiro-ministro, parece ocupar boa parte do seu tempo a tentar controlar o que se diz de si.

Quando, dentro de uns anos, quisermos fazer um bom retrato do que foram estes anos podemos recordar esse dia de Janeiro de 2010 em que o Governo apresentava o Orçamento de Estado. Um orçamento que confirmava tudo aquilo que ainda há poucos meses o Governo não só desmentia como classificava como teses bota-abaixistas. E do que fala José Sócrates durante o almoço com dois dos seus ministros? Sobre um jornalista ou mais precisamente sobre como resolver o problema que esse jornalista representava.

E, como de costume, mal o caso foi conhecido voltámos ao carrossel habitual sobre as conversas privadas ou públicas, as más intenções de quem as revela e tudo o mais que desde 2005 se tornou no argumentário do círculo de Sócrates.

Mas, a cada caso, sobra, ou, melhor dizendo, sobra-me uma cada vez maior sensação de embaraço. Não é uma questão de discordância. É, sim, de vergonha. Vergonha por ele não ter vergonha. E de medo. Não de que Sócrates me dedique a sua conversa durante um almoço, que felizmente não tenho importância para tal, mas simplesmente do que vai resultar disto para o país.

Começou por se fazer de conta que a licenciatura domingueira era uma cabala, depois vieram as campanhas negras no Freeport, na Cova da Beira, na TVI e nas conversas com Armando Vara. Agora já vamos nas calhandrices. A seguir só nos resta cair literalmente dentro dos calhandros ou, mais metaforicamente falando, no pântano. Mas temo que já não demos pela diferença. Ensaísta

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