A queda da casa de Sócrates

Público, 20100206 José Pacheco Pereira

Faço parte de uma minoria daqueles que achavam e acham que existe em Portugal um risco real de "asfixia democrática"


De repente, surgiu ao longo do caminho uma luz estranha, e eu me voltei para ver donde poderia ter saído uma claridade tão insólita, pois atrás de mim só havia a mansão com suas sombras. O resplendor vinha de uma lua no ocaso grande e cor de sangue, que agora brilhava vivamente através daquela fenda antes apenas perceptível, da qual eu disse que se estendia desde o telhado do edifício, fazendo ziguezague, até ao alicerce. Enquanto eu olhava, esta fenda rapidamente se alargou - houve uma rajada mais impetuosa da ventania - o globo inteiro do satélite invadiu de repente o campo de minha visão - meu cérebro sofreu um como desfalecimento quando vi que as grossas paredes ruíam, despedaçando-se - houve um longo e tumultuoso estrondo, com mil vozes de água - e a profunda e sombria lagoa aos meus pés fechou-se funebremente por sobre os destroços da "Casa de Usher".

(Edgar Allan Poe)

Este é dos raros casos em que, escrevendo este artigo à sexta-feira à tarde, não sei muito bem que situação existirá em Portugal no sábado de manhã, quando for publicado. Não por causa da encenação grosseira destes últimos dias à volta da Lei das Finanças Regionais, uma mistura de farronca e de dolo, cujo único efeito foi agravar ainda mais o espectáculo da instabilidade política face aos mercados internacionais. O Governo, que se prestou a este espectáculo, não tem qualquer espécie de noção da gravidade da situação em que colocou o país, isto na hipótese benigna. Porque, na hipótese menos benigna, sabe muito bem o que nos espera qualquer dia destes, e pretende arranjar um pretexto para se pôr a milhas, de preferência culpabilizando outros por uma "situação explosiva" que sempre negou existir e que, bem pelo contrário, ajudou e muito a agravar. Já toda a gente percebeu que Portugal é mesmo uma Grécia que acabará por ter que fazer à força, e por imposição exterior, aquilo que se recusou a fazer, mesmo apesar de ter sido de há dois anos para cá avisado dia sim, dia não, por quase todos os economistas, pelo Presidente da República e por essa senhora frágil que todos atacam e que disse sempre as coisas certas para Portugal, sem qualquer vantagem pessoal e política, pagando um preço elevado por o ter feito num país de irresponsabilidade optimista, outro nome para o desperdício, sob a égide da Casa de Sócrates.

Basta ver a agenda política dos últimos dias do primeiro-ministro para perceber até que ponto é assim. Estas semanas, com a crise "grega" a crescer no horizonte, comemorou os cem dias de um Governo que foi um não-Governo. Não tinha medidas para apresentar, obra dos cem dias, a não ser que se considere as suas experiências de engenharia social "fracturante", como o casamento de pessoas do mesmo sexo, uma "obra" governamental. Almoçou num dos vários dias em que comemorou os cem dias - sempre com a complacência da comunicação social para lhe permitir prolongar a comemoração do vazio - com umas senhoras da moda, alegre e contente, no seu melhor estilo Armani-Boss e deu 200 euros a cada nova criança. Pagos daqui a 18 anos. Este tipo de "oferta", puro desperdício sem sentido social, sem qualquer efeito benéfico mensurável, é mais uma das formas perversas de alimentar a ideia de um Estado que "dá" coisas aos cidadãos, ainda por cima dinheiro. E "dá" coisas com um profundo sentido de injustiça social, porque ricos e pobres vão receber os mesmos 200 euros.

Mas, quando comecei este artigo dizendo que não sabia que dia seria o de amanhã, confesso que na vaga esperança de que Portugal ainda seja um país em que se toma a sério a liberdade e a democracia, estava a pensar naquilo que o Sol revelou sobre a existência de um plano governamental para o controlo político da comunicação social. Serei certamente a última pessoa a ficar surpreendida com esse "plano" - na verdade mais uma conspiração do que um plano - porque faço parte de uma pequena minoria daqueles que achavam e acham que existe em Portugal um risco real de "asfixia democrática", com origem na Casa de Sócrates. Muitos o negaram, alguns com dolo, porque sabiam bem de mais o que se estava a passar e lhes interessava negá-lo; outros com ingenuidade, porque lhes parecia excessivo acusar o primeiro-ministro de mais do que mau jeito e inabilidade ou apenas grosseria no tratamento com a comunicação social. Outros ainda achavam que se tratava apenas de acusações inerentes ao jogo político e, como todos "fazem o mesmo", não valia a pena qualquer preocupação especial. Mas à luz do que todos os dias se vem a saber e daquilo que, com grande cópia de pormenores, faz parte dos documentos judiciais que o Sol começou a publicar, como é possível negar a evidência de que há mesmo uma "asfixia democrática" (seja qual for a imprecisão do termo e o seu mau uso)? Só negando a factualidade de tudo o que já se sabe sobre a "operação TVI" e as suas adjacências é que é possível negar que José Sócrates mais o seu grupo no PS (e intencionalmente não digo o PS, porque a Casa de Sócrates é um grupo muito especial à volta de Sócrates e do seu poderoso gabinete) organizou uma verdadeira conspiração com recursos públicos para, alterando a propriedade de órgãos de comunicação social para mãos amigas, poder assim calar os jornalistas que considerava inimigos.

Tudo é grave nos documentos judiciais, grave no sentido político, visto que do ponto de vista criminal a questão parece encerrada. Mas a dimensão cívica e política extravasa a questão judicial e a conspiração que lá está retratada mostra como funciona o poder político em Portugal, usando redes de poder e influência, a partir do Governo para empresas públicas e privadas, bancos "amigos" por exemplo, para realizar operações de compra de órgãos de comunicação social considerados hostis e para limpeza de pessoas e programas incómodos em vésperas de eleições. Tudo feito às escondidas, disfarçando as operações financeiras por detrás de ecrãs destinados a distanciar as decisões do primeiro-ministro. Este, quando confrontado com as pontas do véu que já se tinham levantado, protegeu-se mentindo ao Parlamento. Mas tudo isto é atentatório da liberdade e da democracia e, num país que preze estes valores, poderia levar à queda de um Governo. Não são os canalizadores de Nixon, mas a diferença não é muita.

Os meus leitores sabem que há muito tempo denuncio aquilo que sempre me pareceu um padrão de controlo obsessivo e de manipulação da opinião pública. Eu sei que tudo isto é um déjà vu, mas não me canso. Nenhum Governo foi mais longe do que o de Sócrates nesse esforço de condicionar o que pensamos, de impedir que possamos ser desviados por qualquer inconveniente jornalista demasiado curioso, ou qualquer jornal que não aceite o traço invisível dos temas proibidos, nenhum Governo foi mais longe na tarefa de nos enganar pura e simplesmente. Para o conseguir gastou-se dinheiro como nunca, agências de comunicação, encenações, marketing e, quando isto não chegava, exercício puro e duro do poder, às claras ou, pior ainda, às escondidas e no limite da legalidade, para varrer tudo o que incomodava a marcha gloriosa da Casa de Sócrates. Se estes novos dados conhecidos não tiverem consequências, é porque não prezamos a liberdade e a democracia como devíamos e merecemos os governantes que temos. Se tiverem, a Casa de Sócrates está como a Casa de Usher a cair. Historiador

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