A Marcha Fúnebre de Chopin nasceu na Polónia

JN 2010.04.18

Zita Seabra

Quando Putin, num gesto louvável, decide pacificar a memória polaca, o avião [com o presidente] cai a um passo da reconciliação.

Katyn é uma pequena vila, envolvida pela floresta que lhe deu o nome, localizada a cerca de 20 quilómetros de Smolensk, a cidade russa onde, num acidente de aviação, morreram o presidente da Polónia e mais 90 pessoas que se dirigiam ao memorial das vítimas de Katyn, para finalmente pacificarem a memória de um dos mais dramáticos acontecimento da história do país.

Em Katyn, segundo os últimos dados oficiais russos, foram executados 21 768 polacos e enterrados em valas comuns.

Para se perceber a dimensão do drama é necessário recordar que, desde Agosto de 1939, vigorava o pacto germano-soviético, o conhecido Tratado Molotov-Ribbentrop. É nesse enquadramento de divisão de fronteiras entre a Alemanha nazi e a URSS comunista que o Exército Vermelho invadiu a Polónia e fez mais de 300 mil polacos prisioneiros. Estes prisioneiros foram levados para a URSS e entregues ao NKVD (a polícia secreta soviética) que os enviou para o Gulag, os campos de concentração comunistas. Muitos seguiram para Katyn, outros, centenas de milhares, foram enviados em comboios para outros campos de concentração na Rússia, na Ucrânia ou na Geórgia. Os prisioneiros de Katyn foram todos fuzilados por ordem do órgão máximo do Partido Comunista da URSS.

O Politburo do Partido Comunista aprovou, a 5 de Março de 1940, a ordem de execução dos prisioneiros de Katyn. Cinco membros do Politburo assinaram a proposta escrita por Estaline e Béria (Molotov, Voroshhilov e Mikoyan), como se pode ver no documento divulgado e que faz parte dos arquivos do Comité Central.

Hoje, estão identificadas as vítimas e conhecem-se os seus nomes, sabe-se quem eram, têm monumentos em vários locais do Mundo. No total do massacre, foram executados metade dos oficiais e generais do exército polaco, sete capelães, entre outros padres, pilotos e marinheiros, 300 médicos, centenas de académicos, advogados, artistas, jornalistas. Numa palavra: foi fuzilada a maior parte da intelligentsia polaca. Fuzilados com um tiro na cabeça e atirados para a vala comum.

O PCUS negou que o massacre tivesse acontecido. Como se Katyn não tivesse existido. Só quando as tropas nazis alemãs invadiram a Polónia e descobriram as valas comuns é que imediatamente Moscovo "explicou" que tinha sido um massacre dos alemães.

Mesmo durante a guerra contra os nazis, quando o governo polaco no exílio se aliou à URSS para formar um exército polaco e combater os alemães, os russos continuaram a negar qualquer fuzilamento e explicaram que os milhares de polacos desaparecidos andavam certamente perdidos. Foi assim que a Alemanha nazi usou Katyn contra a URSS, atribuindo a URSS oficialmente o massacre aos nazis.

Os comunistas soviéticos apressaram-se a apresentar "documentos", a anunciar "investigações", a chamar entidades "isentas". Conseguiram. Katyn, no fim da guerra é atribuído, mesmo pelos aliados, aos alemães. Simultaneamente, torna-se num tema proibido na Polónia comunista, tema chorado, cantado e sussurrado, que só volta a emergir depois da queda do comunismo.

O povo polaco, as famílias das vítimas sabiam, sempre souberam, a verdade. O Solidariedade tentou homenagear as vítimas de muitas formas, sempre reprimidas… Só em 1989 Gorbatchev admite que o NKVD tinha a responsabilidade do massacre de Katyn. A verdade fez o seu caminho. Boris Yeltsin, pressionado pela vontade do povo polaco de saber a verdade, liberta alguns documentos e é construído o memorial.

Não chega. Os polacos, particularmente os familiares das vítimas, querem saber toda a verdade e querem aceder a todos os documentos existentes na Rússia sobre Katyn, incluindo fotografias, o filme do NKVD e querem saber porquê. Querem sobretudo saber se o NKVD o fez em conivência com a Gestapo na sequência do Pacto germano-soviético.

Quando finalmente o presidente Putin, num gesto louvável, decide pacificar a memória polaca, convidando o presidente Lech Kaczynski para a cerimónia dos 70 anos do massacre, o avião presidencial despenha-se junto a Katyn, ao tentar aterrar em Smolensk. A 20 quilómetros de Katyn. Cai a um passo da reconciliação, mas com a força da verdade encontrada e deixa o horror marcado no rosto dos polacos que choram as suas vítimas e agora os seus mortos no acidente de 10 de Abril. Parece-me que a Marcha Fúnebre de Chopin nasceu na Polónia e não deve ter sido um acaso.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António