Não vás trabalhar, Tóino. Deita-te ao sol.

Público, 2010-04-29 Helena Matos

O poder irrita-se com este povo, que perante tão graves factos estende a toalha. O que esperavam que os portugueses fizessem?


Segundo a RTP, "uma das consequências da greve [dos transportes públicos] parece ter sido também uma inusitada procura das praias. O calor incentivou e entre ficar em casa ou perder horas em filas de trânsito muitos portugueses preferiram o sol e o mar". E porque haverá a RTP de considerar inusitada esta procura das praias? Não estávamos ainda há tão pouco tempo no melhor dos mundos? Só os tremendistas, os lamurientos, os bota-abaixistas e os retrógrados não percebiam que caminhávamos para um país moderno, alavancado por um Estado que empregaria cada vez mais jovens, criaria cada vez mais empresas de capitais públicos e investiria em grandes obras públicas. Enfim, do computador Magalhães ao "direito ao TGV" ou do novo aeroporto aos projectos PIN, era tudo "um progresso absolutamente extraordinário", para usar as palavras proferidas há um ano pelo primeiro-ministro.

O que separa a circunstância em que essa frase foi proferida da realidade é o melhor retrato da nossa crise: em 2009 o primeiro-ministro considerou "um progresso absolutamente extraordinário" os efeitos do Estatuto do Aluno, aprovado pelo seu Governo, na diminuição do número de faltas. Um ano depois constata-se que as faltas não só não diminuíram, como provavelmente terão até aumentado em consequência desse estatuto. Pelo caminho as escolas que ousaram contrariar as estatísticas oficiais do Ministério da Educação - as tais do progresso extraordinário - foram brindadas com inspecções.

E se da educação passarmos para a justiça, para os números da segurança, do endividamento, da despesa... encontramos sempre esta constatação à posteriori do falhanço daquilo que em sucessivos momentos foi apresentado como "um progresso absolutamente extraordinário" e cuja desmontagem já não se faz porque esse "progresso absolutamente extraordinário" que agora se sabe ter sido um fiasco já foi substituído por outro "progresso absolutamente extraordinário" que dentro em pouco será desmentido pela realidade e assim sucessivamente.

Se nós não tivéssemos praia, talvez tudo isto nos gerasse uma forte indignação. Mas nós temos praia e por isso fomos para a praia. Dirão que as tabernas do passado, os cafés do presente, os centros comerciais e a televisão desempenham também esse papel. Não é verdade. Tudo isso são espaços de entretenimento. A praia não entretém. Na praia põe-se o contador a zeros. Se nos tirassem a praia, talvez nos indignássemos a sério. Ou, quem sabe, metêssemos mãos à obra como os alemães. Mas nós temos praia e é lá que o poder nos encontra quando as circunstâncias o obrigam a procurar-nos, geralmente para nos dizer que o "progresso absolutamente extraordinário" não só não se confirma, como se traduziu no seu contrário. Foi assim no início dos anos 70, quando aquelas multidões à espera da camioneta para a Costa da Caparica durante os feriados de Junho pareciam pouco compatíveis no seu frenesi festivo com a solenidade do Dia de Portugal e sobretudo com as condecorações às famílias dos militares mortos no Ultramar. Voltou a ser assim no PREC, quando o povo preferiu o mar à maré revolucionária e é agora assim, em 2010, quando o Governo finalmente admite a grave crise económica do país.

Nesses momentos o poder geralmente irrita-se com a futilidade deste povo que perante tão graves factos se limita a estender a toalha ao sol e a cobrir-se com protector solar. Cabe perguntar: o que esperavam que os portugueses fizessem?

Por exemplo, esta semana, quando Lisboa ficou caótica por causa da greve dos transportes públicos, deveríamos ter feito o quê? Manifestarmo-nos dizendo que estamos dispostos a pagar mais impostos para que os trabalhadores do Metro e da CP, que, por interposto Estado, são funcionários do todos nós, não vejam os seus vencimentos congelados? Que estamos apostadíssimos em continuar a financiar as empresas públicas de transportes que há anos nos dizem que são nossas e cuja futura privatização os trabalhadores contestaram nesta greve?

Também podíamos ter ido para uma estação ler o relatório do Tribunal de Contas que dá conta da "falência técnica" do Metro e da forma, essa sim inusitada, como é administrada aquela empresa. Por exemplo, determo-nos naqueles linhas que descrevem como fortemente desajustados da realidade os dados que servem de base à repartição da receita dos passes intermodais e combinados e tentarmos perceber como é possível que ninguém faça nada para alterar tanto prejuízo.

E, claro, podíamos fugir deste forte desajustamento entre a realidade anunciada do "progresso absolutamente extraordinário" e a realidade vivida do falhanço no único local onde essa diferença que é o nosso abismo se anula: a praia. Aquela linha onde o mar sussurra: Deita-te ao sol, Tóino. Que a praia é o que se leva desta vida vivida num país que fez da mentira o seu fado.
Ensaísta

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