A Primeira República e Fátima

 “Os eventos de Fátima adquirem a sua particular relevância – embora transcendam a situação concreta em que ocorrem – no contexto das transformações em curso em Portugal e na Europa da época (…). Assistia-se, por toda a parte, a profundas transformações de ordem existencial. Estava em curso a revolução industrial, dando origem a burguesias bem diferenciadas (…). Como a história é o lugar da criação dos contextos de sentido, as visões do mundo desses segmentos da população, em correspondência com a sua concreta existencial, tendem a afirmar-se como dominantes, com vontade de apagar todas as demais mentalidades que se lhes opunham ou se revelem contrárias (...).

Numa primeira fase, a república trava uma batalha aberta contra a Igreja no campo político e jurídico. A luta centrou-se à volta de duas principais questões: a criação das “associações cultuais” e as pensões a conceder ao clero. O afrontamento entre o Estado e a Igreja foi aqui aberto e directo. Se o Estado afrontou a Igreja, a Igreja afrontou o Estado1 (…).

A questão não era, todavia, unicamente política, mas sócio-cultural. Não se tratava apenas de substituir as estruturas políticas, mas de operar uma verdadeira mudança de mentalidades. O Estado que pretendia separar-se da Igreja, procurava a laicidade, mas para vencer as resistências que encontrava pela frente, entregava-se ao laicismo. A laicidade é um conceito que tem a ver com o Estado e não com a Igreja nem com a sociedade civil (…). É neste novo plano sócio-cultural que Fátima aparece como o principal teatro de guerra desencadeado pela Primeira República (…). A luta configura-se e a campanha desenrola-se contra Fátima no quadro destas diversas coordenadas.

Realizada a primeira “Aparição”, em 13 de Maio de 1917, logo os meios de comunicação social afectos à maçonaria, ao livre pensamento e ao republicanismo entram em acção para denunciarem o fanatismo em marcha e para alertarem os poderes políticos. Mostram-se atentos e extremamente vigilantes.

Em 13 de Agosto de 1917, segundo o jornal Liberdade (18-8-1917), o Administrador de Vila Nova de Ourém, acompanhado de um oficial da Administração, dirigiu-se a casa dos pais dos pastorinhos, procede ao seu sequestro, seguido da sua detenção na sede do concelho (…). A Aparição de 13 de Outubro de 1917 veio tornar relativamente irreversível a questão. (…) Além disso, tudo se realizava em obediência a um calendário previamente definido por Nossa Senhora (…).

Na noite de 23 de Outubro desse ano de 1917, alguns carbonários ou livres pensadores de Santarém procederam à transferência da Cova da Iria para Santarém do tronco da azinheira sobre a qual Nossa Senhora aparecera e de alguns objectos aí colocados pelos peregrinos (…)

Fátima emergia igualmente como o espaço onde se exprimia, por excelência, o conflito entre a razão e a crença, entre a ciência e a fé. Este conflito vinha já de trás (…). O argumento usado recorrentemente pelas correntes ideológicas era a lei da separação e a necessidade da sua aplicação (…).

Entre sobretudo 1920 e finais de 1924, a acção dos actores políticos torna-se mais directa, intensa e violenta. O Governador Civil de Santarém ordena a proibição da peregrinação de 13 de Maio de 1920, por ordem do ministro do interior. Entra então em acção a força armada, nomeadamente a Guarda Nacional Republicana, ocupando as estradas, de modo a impedir o acesso à Cova da Iria (…).

A capelinha das Aparições é dinamitada em 6 de Março de 1922. O Governo, nessa altura, procura investigar os autores de tão hediondo crime. A série de atentados ocorridos na sociedade, ao tempo, criava grande insatisfação entre a população (…).

O recrudescimento das medidas persecutórias dos católicos e nomeadamente impeditivas da peregrinação à Cova da Iria davam entretanto origem a algumas expressões de medo. Não obstante a afluência maciça – ou talvez por causa disso –, os poderes constituídos procuram opor-lhe um dique que cortasse o acesso, colocando um aparato policial à volta de Fátima. Certo temor se terá infiltrado nos espíritos de alguns, paralisando os seus movimentos (…).

A repressão exercida sobre os católicos parece atingir, por ocasião do 13 de Outubro desse ano de 1924, um dos seus pontos mais intensos e violentos. Se para os republicanos se tratava de impedir a perturbação da ordem pública, cujo receio desejavam afastar, para os católicos em causa estava, segundo as Novidades (13-10-1924), a defesa de uma Igreja livre do ódio e da sombra blasfema dos seus inimigos. Mas enquanto a repressão era anunciada, agia-se depois discretamente (…).

Assiste-se, nessa altura, a uma autêntica arrancada não contra o regime, mas contra as suas arbitrariedades. O movimento desenvolve-se a partir do Centro Católico. Terá chegado a hora de não se consentir mais a brutalidade do poder, tida como “mais uma afronta à consciência do país” (…).

As manifestações de protesto eram de molde a conduzir à proposta de uma de duas possíveis hipóteses de resolução do conflito, a contestação directa do regime político vigente ou o recurso à desobediência civil. A primeira via de saída foi adoptada pelo jornal O Dia (13-10-1924). Contesta, todavia, a posição seguida por este jornal a generalidade da imprensa católica, aconselhando antes a desobediência civil, no estrito campo da luta pela substituição da legislação (…).

A Igreja mostrava-se, nessa altura, disposta a submeter-se à lei comum, liberta de leis opressoras, fossem elas de separação, fossem elas concordatárias, nomeadamente quando celebradas em liberdade diminuída ou interpretadas arbitrariamente pelo Estado. O grande desígnio a alcançar seria o da liberdade da Igreja, desígnio que a mesma Igreja não alvejava tanto como quando se sentia aprisionada (…).

O Estado desenvolvia uma política anti-religiosa, permeada de agressividade e de violência (…). Três presidentes do Governo mostraram-se particularmente activos na repressão dos eventos de Fátima, com intervenções directas, António Maria Baptista, António Maria da Silva, que durante algum tempo sobraçou igualmente a pasta do Interior, e Alfredo Rodrigues Gaspar (…).

Portugal conheceu, de facto, nos inícios do século XX, um dos combates mais acesos travados na Europa contra o Catolicismo.

Excertos de uma conferência proferida em Coimbra por António Teixeira Fernandes

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(1) António Teixeira Fernandes, Afrontamento Político-Religioso na Primeira República, Porto, Estratégias Criativas, 2009.

Agencia Ecclesia, 2010.06.01

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