Políticos: a dízima a dobrar

Políticos: a dízima a dobrar

DN20100729 MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO
Pela voz de Dom Carlos de Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, ficámos a saber que os políticos católicos devem contribuir com 20% do seu vencimento para o fundo de solidariedade da Igreja Católica. Tentei apurar se o bispo se tinha referido a todos os católicos ou apenas aos católicos que exercem cargos políticos e, para meu grande espanto, confirmaram-me esta última versão.
Confesso que, para além de espantada, fiquei confusa. De facto, sendo a voz de Dom Carlos, na circunstância, a voz da Igreja, logo duas dúvidas se formaram na minha cabeça. A primeira respeita à avaliação que nela se faz do exercício da política por parte de católicos, já que a Igreja parece só querer 20% dos seus ordenados, em vez de, por exemplo, exortar a que sejam testemunhas fiéis da mensagem evangélica no seu exercício e nas suas decisões, que não tenham dois "chapéus", o de cristãos e o de políticos, usados de acordo com a conveniência das circunstâncias. A segunda tem que ver com a ideia, aparentemente assumida, da inutilidade do exercício da política em termos do bem comum de tal modo que o dinheiro assim ganho seja visto como imerecido e até ilegítimo, um dinheiro cuja sujidade se remiria por uma dupla dízima para o fundo de solidariedade.
Ao longo da minha vida exerci diversos cargos políticos e usei os poderes que os mesmos me conferiram e que são, como se sabe, poderes-deveres. Tive sempre uma clara percepção dos riscos do poder, materializado em aspectos muito mais perigosos e tentadores que o dinheiro auferido mensalmente cujo montante está, aliás, pré-fixado em Diário da República. O que são os riscos do orgulho, da prepotência, da falta de isenção comparados com isso? Ou, noutros casos, a falta de coragem disfarçada no subterfúgio da correcção política, a negligência ou a dureza do coração? Pecados gravís- simos, digo eu, por actos e omissões. Pio XII afirmou que a política deve ser uma forma superior de exercer a caridade, a Igreja tem na sua doutrina social uma cartilha preciosa e, mais recentemente, Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate deu-nos um contributo decisivo para entender a urgência de sermos parte nos combates que um mundo inquieto e fragmentado requer. Todos os dias, com as nossas forças e fraquezas, com os nossos acertos e erros, mas sempre com a exigência de seguir o caminho, a verdade e a luz. De que política e de que políticos fala então Dom Carlos Azevedo?
Num outro plano, bem mais relevante, a minha confusão foi total. De facto, a nossa condição de políticos é transitória, mas a nossa condição de baptizados é definitiva. Uma "nova aliança" que nos acompanha até à morte e pela qual o imperativo do amor ao próximo é uma constante para todos os cristãos, políticos ou não. Esse amor traduz-se também em donativos, mas não só. Este é o amor da extrema atenção pelo outro, do cuidar, do prover, do consolar. Em nenhuma das obras de misericórdia, espirituais ou materiais, se refere o acto de dar di- nheiro. Cuidar dos enfermos, vestir os nus, acudir aos aflitos, visitar os presos, acolher os peregrinos, tudo implica proximidade física, gestos, disponibilidade de tempo, portas adentro do nosso coração, da nossa vida e da nossa casa. Porque dar dinheiro é o mais fácil, hoje até o fazemos por transferência bancária sem gastar tempo, palavras ou gestos.
Posto nestes termos, temo que o fundo de solidariedade pareça uma colecta fiscal; os 20%, um imposto exclusivo para políticos; e a Igreja, o Estado. Um dinheiro que não é caridade, mas uma contribuição financeira para algo que se reconhece como socialmente útil. Mas se falamos em caridade, então o que nos interpela vai muito além disso. Todos sabemos que os tempos vão exigir mais de cada um de nós para permitir à Igreja acudir às velhas e novas necessidades de milhares e milhares de portugueses. Os cristãos, políticos ou não, vão responder. Como, aliás, sempre fizeram.


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