Um paradoxo do nosso Estado social: mais desigualdade

Público, 2010-08-27 José Manuel Fernandes
O aumento das desigualdades nas últimas décadas deveria levar a questionar, e não a idolatrar, o Estado-Providência

Seja qual for o critério que apliquemos, ou o índice que preferirmos, "o período de maior crescimento e consolidação do Estado-Providência foi também o de mais forte crescimento da desigualdade de rendimento", como escreve Luciano Amaral em Economia Portuguesa, As Últimas Décadas, o pequeno mas fundamental livro recentemente editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Se as políticas se medem pelos seus resultados e não pelas suas intenções, num país onde se gritasse menos e se pensasse mais aquela simples constatação impediria que se transformasse o nosso Estado social numa arma de arremesso político. Pela razão simples de que um Estado-Providência que falha num dos seus principais desígnios - o de fazer diminuir as desigualdades sociais - é, no mínimo, um Estado-Providência que merece ser questionado. E não apenas por "razões economicistas" derivadas da sua sustentabilidade financeira: afinal de contas somos o país mais desigual da União Europeia, com excepção do Luxemburgo (um caso muito especial) e da Bulgária (outro caso-limite). Afinal de contas, segundo o último relatório disponível da OCDE, o coeficiente de Gini (um dos indicadores mais utilizados para medir as desigualdades) passou de 0,33 por volta de 1990 para 0,38 (o mesmo dos Estados Unidos) em meados desta década.
Luciano Amaral encontra várias razões para este fracasso relativo do Estado-Providência português na redistribuição da riqueza e na diminuição das desigualdades, algumas delas comuns a outras nações onde os actuais modelos sociais também não têm evitado o aumento das desigualdades. Para aquele historiador dos processos económicos, "uma parte da explicação da desigualdade em Portugal reside, de forma aparentemente paradoxal, no próprio funcionamento do Estado-Providência". Porquê? Porque, apesar de proclamar a universalidade, esse Estado-Providência tem "características pouco universais, continuando a fundar-se sobretudo numa estrutura profissional (ou "corporativa"). E porque, ao mesmo tempo, o nosso sistema fiscal, sendo progressivo na teoria, não o é na prática.
Vale a pena olhar para este último aspecto, que tanta ventania originou esta semana. Na verdade, a colecta do IRS, o "imposto progressivo e redistributivo", só representou, na última década, 10 por cento do rendimento das famílias. Isto significa que mesmo que a sua função redistributiva funcionasse bem, ela teria sempre um peso marginal no reequilíbrio dos rendimentos reais dos cidadãos. E apesar de nenhum partido questionar a progressividade deste imposto, a questão que se deveria colocar era a de saber se vale a pena, para um efeito tão pequeno e tão marginal, manter um imposto tão complicado e que gera, noutras frentes, tantas injustiças relativas. Infelizmente não só ninguém quer ter essa discussão como ela foi já proscrita pelos defensores acéfalos do nosso questionável Estado social.
E como é que o Estado-Providência se tornou, ele mesmo, um perpetuador das desigualdades que, na retórica, pretende combater?
Primeiro que tudo, porque o nosso Estado-Providência assegura antes do mais a "providência" das diferentes corporações, à cabeça das quais vem a da administração pública, cujos regimes foram, e continuam a ser, muito mais favoráveis do que os regimes do resto da população - e isso é verdade tanto no que respeita à segurança social ou à segurança no emprego, como no acesso à saúde, para referir apenas três áreas cruciais. Como notou Luciano Amaral, vivemos também tempos de "uma luta constante pelos recursos do Estado", o que gera um frenesim que beneficia "especialistas da reivindicação" que não coincidem, necessariamente, com os que mais necessitam.
Criam-se assim várias dicotomias - entre os mais velhos, que beneficiam de regimes mais generosos, e os mais novos, que nem sabem se haverá dinheiro para as suas pensões; entre os que estão empregados e os que não têm emprego ou têm empregos precários; entre os que estão nas carreiras protegidas do Estado e de alguns oligopólios e os demais; e por aí adiante. Ao mesmo tempo, o sistema de "direitos adquiridos" gera obrigações que comprometem de tal forma o sistema que este deixa de ter recursos para redistribuir, antes assegurando, por assim dizer, "seguros sociais" a quem se colocou em posição de os vir a receber em condições de privilégio relativo.
Depois, e este aspecto é muito importante, porque o activismo do Estado-Providência, alimentado quer pelo calculismo associado aos ciclos eleitorais, quer pelas melhores intenções do mundo, gera sempre "efeitos indesejados". Ou seja, as distorções introduzidos nos comportamentos sociais por subsídios, abonos, tensas, rendas, bolsas e tudo o que se imagine induzem com frequência dependências inesperadas, dependências essas que implicam novos e ainda maiores custos financeiros.
Como se tudo isto ainda não fosse suficiente, uma sociedade largamente intervencionada pelo Estado e pelos seus "serviços" não só se habituou à esmola como, ao mesmo tempo, foi destruindo os seus ascensores sociais. Ou seja, além de ser uma sociedade mais desigual, é também uma sociedade onde é menor a mobilidade social.
Há, por vezes, a ideia de que estes problemas do nosso Estado-Providência se resolvem melhorando a sua gestão. É o que defenderam esta semana os subscritores do abaixo-assinado dito em defesa do SNS. Ora sendo indiscutível que a Saúde até é o sector com mais sucesso do nosso Estado-Providência, isso não nos permite iludir a sua ineficiência relativa. Como notou José Mendes Ribeiro em Saúde, A Liberdade de Escolher, com base num índice calculado a partir do ano-base de 1995, até 2006 "a produção do SNS cresceu apenas 30 por cento em termos de consultas, internamentos, urgências e cirurgias, mas o respectivo financiamento cresceu 150 por cento." O que é insustentável. Até porque, apesar de gastarmos no sector uma percentagem do PIB superior à média europeia, o relatório relativo a 2009 do Euro Health Consumer Index colocava Portugal em 21.º lugar entre 33 países europeus, só tendo atrás de si os antigos países do Leste. Ou seja, melhorámos muito, mas o modelo de SNS não é ideal nem devia ser intocável.
Por tudo isto, é surpreendente que não se queiram discutir mudanças. Que nem se olhe, por exemplo, para o que está a acontecer a uma velocidade estonteante no Reino Unido, onde a coligação conservadores-liberais desencadeou um processo de reformas que a revista The Economist - antes céptica em relação a este Governo - designou, num editorial intitulado "Radical Britain", o "grande jogo". Prevendo que, "tarde ou cedo, muitas outras nações do mundo desenvolvido terão de seguir pelo mesmo caminho".
É muito fácil agitar fantasmas. É muito mais difícil aceitar a dureza da realidade. E, num país como Portugal, é quase impossível discutir ideias e propostas diferentes. É um dos mais duradouros sinais do nosso atraso e da nossa menoridade.
Jornalista, www.twiter.com/jmf1957

Comentários

Anónimo disse…
Um exemplo real, entre muitos, que ilustra porque aumentou a despesa na saúde: Centro de saúde do norte, com SAP - durante a semana assegurado por 1 médico. Ao fim de semana assegurado por 2 médicos - em Horas Extraordinárias. Nada seria de estranhar se o movimento fosse maior aos fins-de-semana - mentira - é menor.Justificação???!!!
Multiplique-se este exemplo por muitas casinhas e é só fazer as contas. Viva Portugal

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