A revisão constitucional já começou

Público, 2010-09-12 José Ribeiro e Castro
José Sócrates grita defender o Estado social, mas cede o Estado todo inteirinho num conclave de colegas do Ecofin

Afinal, a revisão constitucional já começou. Deu-lhe início o Governo Sócrates, quando aprovou, a 7 de Setembro, no Ecofin, o novo sistema de controlo prévio dos orçamentos dos Estados-membros da União Europeia, pelo Conselho e pela Comissão.

Em certo sentido, passámos a um regime bicameral em sede orçamental: primeiro, as instâncias europeias, ao modo de câmara alta, apreciam as intenções orçamentais dos governos dos Estados-membros, lavrando os seus comentários, observações e sentenças; mais tarde, os Parlamentos nacionais, como câmara baixa, discutem as propostas finais de Orçamento apresentadas pelos respectivos governos, já devidamente balizadas pelo "semestre europeu", e aprovam-nas no quadro das minuciosas baias estabelecidas. E o processo orçamental, que normalmente se concentrava nos meses de Outubro e Novembro e era exclusivamente nacional, irá começar seis meses mais cedo e abrir por uma fase de concertação internacional decisiva.

Muitos apressaram-se a saudar esta decisão como verdadeira "revolução coperniciana" na integração europeia, como efectivamente é. Mas os mesmos e outros, um pouco mais à frente, logo dobraram a língua, fingindo negligenciar a novidade e o enorme relevo institucionais do novo sistema. Uns afirmaram que a "soberania financeira" já tinha sido perdida, quando aderimos ao euro. Outros convocaram as aldrabices gregas para legitimar o controlo prévio dos orçamentos nacionais. Ora, a verdade é que as trapalhadas gregas nada tiveram que ver com a "verdade" declarada nos seus orçamentos, anos a fio, mas com problemas mais sérios de acompanhamento da realidade, de execução orçamental e de manipulação estatística. E a verdade também é que, quando aderimos ao euro, a todos foi solenemente garantido que a "soberania financeira" não seria beliscada e as políticas orçamental e fiscal manter-se-iam competência exclusiva nacional. Poderia duvidar-se - e muitos duvidaram. Mas foi isso que foi dito - e jurado!

Um dia, no Parlamento Europeu, não sabia se havia de rir ou de chorar, quando ouvi Romano Prodi, então presidente da Comissão Europeia, com delicioso descaramento, explicar o método de construção da UE como o da "ambiguidade construtiva": isto é, ir-se fazendo uma coisa, negando-se que se o esteja a fazer. Para a maioria do sistema, as questões de legitimidade e clareza são ninharias sem importância.

Por isso, não quero tanto, aqui, discutir aquela medida em si. Terá defensores e críticos, argumentos de apoio ou contestação. Mas o que é absolutamente extraordinário, e um sinal dos tempos completamente extravagantes que vivemos e atravessamos, é uma reforma com aquele potente conteúdo e, mais ainda, o alcance e as implicações que terá, não ter sido precedida sequer da apresentação formal do problema e de um debate sério na Assembleia da República, sede do poder constituinte e legislativo - e centro do poder orçamental que se viu, assim, fortemente condicionado e parcialmente espoliado. Como igualmente espanta que o Governo, que diligentemente, ao abrigo do estatuto da oposição e da praxe longamente estabelecida, convoca previamente os partidos para com eles analisar as matérias em apreciação nas reuniões do Conselho Europeu, não tenha sentido a necessidade, nem o dever de proceder, ao menos, de igual forma em matéria de tão fortes consequências nacionais.

O novo procedimento poderia, aliás, ter sido decidido apenas como método transitório, algo ajustado à presente crise, que duraria só o tempo necessário a superá-la. Seria um sinal mínimo de respeito pela soberania nacional, essa coisa caída em desuso. Mas não consta que tenha sido isso. O que faz dela, materialmente, uma decisão própria de um tratado, subtraída ao devido escrutínio, no plano político e parlamentar. Tudo, poucos meses depois de entrar em vigor o Tratado de Lisboa, já reduzido a inutilidade e gloriosa velharia em sede de governação económica europeia.

José Sócrates gesticula contra propósitos de revisão constitucional, mas fá-la pela calada nos corredores de Bruxelas. Grita defender o Estado social, mas cede o Estado todo inteirinho num conclave de colegas do Ecofin - sem dar cavaco a ninguém - e cederá também o social, a conta-gotas ou por atacado, no seu devido tempo, se as instruções orçamentais comunitárias assim o determinarem, em cada concreto ano de aplicação do "semestre europeu". Como de resto está a fazer, todos os meses, no descalabro financeiro a que conduz Portugal e onde afunda o Estado português.

A política não é o que se diz. É o que se faz. Deputado do CDS/PP


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