Aquele que sofre por todos nós

ALBERTO GONÇALVES
DN2010-10-03
Coitado do eng. Sócrates. A dra. Ana Gomes, conhecida pelo fervor humanitário, já avisou ser "tempo de todos os socialistas se unirem, estoicamente, em apoio ao Primeiro Ministro (sic)". Porquê? Por causa da "agrura de ter de decretar medidas durissimas (sic) e de arrostar com incompreensão e impopularidade". E o dr. Almeida Santos, embora com menos erros ortográficos, vai mais longe ao pedir o contributo de todos os portugueses: "O povo", proclamou a eminência, "tem que sofrer as crises como o Governo as sofre".
É o mínimo. Ao contrário do que alguns sugerem, não são os cidadãos anónimos as únicas vítimas da austeridade que o eng. Sócrates e os seus subordinados reforçam de quatro em quatro meses. É verdade que uma parcela crescente da população está desempregada, e é verdade que uma parcela crescente dos rendimentos da população ainda empregada acaba removida pelo Estado. Mas esses ligeiros percalços não se comparam à angústia de quem os anuncia em horário nobre televisivo. Impor sacrifícios aos outros é uma tarefa dolorosa, e dado que o eng. Sócrates e o dr. Teixeira dos Santos começam a repeti-la com regularidade, a dor que sentem deve roçar o insuportável.
Principalmente se não se tem culpa daquilo que motivou os sacrifícios. E o Governo, conforme a dra. Ana Gomes explica com a lucidez habitual, não tem culpa nenhuma da situação actual: a culpa é da "selvajaria da lei dos mercados" e de uma União Europeia "dominada pela direita neo-liberal".
Claro que sim. A mim só me resta perceber quando é que a "direita neo-liberal" tomou conta da UE e, para lá do natural horror dos investidores internacionais, qual o nexo entre a "selvajaria" dos "mercados" e o desnorte das contas caseiras. Talvez isso inocente um ministro das Finanças que, à primeira e à segunda vistas, é um desastre financeiro e, a julgar pelos truques, revisões, subterfúgios e ocultações, uma tristeza ética. E talvez isso legitime um primeiro-ministro que, de atoarda em atoarda, aterrou na crise agora, embora prometa há dois anos combater a crise com as medidas opostas às medidas agora prometidas para combater a crise.
Na misteriosa retórica governamental, a crise tanto se resolve através do esbanjamento quanto através da contenção. Às vezes através de ambos em simultâneo. A diferença é que, fora da retórica, apenas o esbanjamento é autêntico. O modo como lida com a contenção aproxima o eng. Sócrates de George Costanza, de Seinfeld, cujo sonho consistia em fingir ser arquitecto - e não em sê-lo de facto. O sonho do eng. Sócrates é fingir que corta na despesa pública. E cortar realmente nos ganhos privados.
Sucede que, iluminado por convicções que mudam a cada instante, o eng. Sócrates decreta essas coisas com um, cito, "aperto no coração". Donde seria de péssimo gosto que a plebe colocasse as suas ínfimas agruras à frente dos problemas cardíacos de Sua Excelência. A hora não é de resmungos: é de empatia para com um estadista que, patriótica e condoidamente, resignou-se a gastar o nosso dinheiro. Não custa nada, excepto dinheiro. Vamos todos, todos, todos apoiar estoicamente o eng. Sócrates, partilhar um pedacinho do seu sofrimento e, na impossibilidade de que termine o mandato com dignidade, rezar para que o termine depressa.
Segunda-feira, 27 de Setembro
O que fizemos para merecer isto
Anda toda a gente a divertir-se com o discurso do eng. Sócrates na Universidade de Columbia, que corre na Internet e foi expelido num inglês que não é apenas mau, como o próprio primeiro-ministro avisou no início da intervenção, mas nem chega a ser inglês.
De qualquer maneira, em vez de parodiarem a embalagem do discurso, as pessoas fariam melhor em atentar no seu conteúdo. Não que o conteúdo encerre sentidos profundos à espera de exegese. Pelo contrário: a retórica que sobreviveu à betoneira linguística do eng. Sócrates não tem sentido nenhum. E esse é que é o problema.
Falar pessimamente inglês (ou francês, ou alemão, ou húngaro) é o menos, embora custe insistir em fazê-lo perante uma audiência letrada. Grave é, ou pode ser, o que se diz, e o que o eng. Sócrates disse em Nova Iorque consistiu numa acumulação de banalidades e patranhas sobre energias renováveis digna de um sofrível vendedor de pechisbeques. Isto é, o tipo de lengalenga a que nos habituámos a ouvir-lhe em português e para o qual estamos, feliz ou infelizmente, anestesiados. Por acaso, em "inglês" as costuras da retórica do homem notam-se melhor. E as costuras do pensamento (digamos) também. O resultado agride.
Não sei a que estado precisou o País de chegar para que o seu Governo fosse liderado por semelhante exemplar. Há pior? Certamente, que ainda não chegámos às funduras do arlequim venezuelano, agora com fato de treino patriótico. Porém, já chegámos demasiado longe, e não vale a pena alimentar ilusões: apesar do apego ao poder que o eng. Sócrates revela, apesar do egocentrismo patológico, apesar das desesperadas manhas, apesar de tudo, ele está onde está porque assim o quisemos. Porque acreditámos nas mentiras e, pior, porque desejámos acreditar nelas.
Além de nos representar formalmente, o eng. Sócrates representa com vasta propriedade a essência do que hoje somos. E a vergonha que devemos sentir dele é, em primeiro lugar, a vergonha que devíamos sentir de nós, por muito que "nós" seja uma generalização abusiva: eu não ajudei a elegê-lo.
Sexta-feira, 1 de Outubro
Uma demonstração de força bruta
A greve é um direito? Parece que não. Pelo menos para os dirigentes da UGT espanhola, que na recente greve geral afirmaram explicitamente a obrigatoriedade de adesão. A greve, portanto, é um dever. E quem não o cumpre? Arrisca-se a lidar com os famosos "piquetes", instituição que se dedica a exercer violência sobre alguns trabalhadores em nome do valor supremo, o interesse de todos os trabalhadores.
É sempre fascinante ver, como se viu agora em Espanha e regularmente em certa Europa, assalariados agredidos e insultados em interesse e benefício próprios. Os media, pelo menos os media que assim quiseram, contaram das quadrilhas que bloquearam estações de autocarros, percorreram cidades a intimidar o pequeno comércio e, na versão moderna e "activista", arrasaram propriedade alheia.
Por muito que a delinquência se repita, não sei de espectáculo que encene com maior exactidão o fracasso do marxismo. Temos uma classe que só se define pela consciência de si mesma. Temos os membros inconscientes da classe. Temos o método primordial de correcção dos desvios de classe: a brutalidade. Temos, afinal, uma visão totalitária da humanidade, que não se limita a separar radicalmente os indivíduos "bons" dos "maus": nem sequer reconhece a existência do indivíduo enquanto tal. Existem, somente, as "massas", unidas e enlatadas em clichés para "corroborar" a teoria.
É facto que a teoria vem sendo filosófica e pragmaticamente devastada há mais de um século, infelizmente com demasiadas vítimas a atestá-lo. Porém, quem não é dado a livros ou a História pode ver o filme: o filme dos "piquetes" que os "telejornais" às vezes passam, principalmente protagonizado por indivíduos com o privilégio de um emprego estável que tentam obrigar os restantes a perderem o seu. A greve geral, alegada "demonstração de força", é, afinal, uma confissão de impotência. Incómoda e com frequência criminosa, mas impotência de qualquer modo, a qual será exibida a 24 de Novembro nas ruas do nosso país. Um museu seria o cenário ideal.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António