Mesmo repetida muitas vezes, a mentira não se torna verdade


Público 2010-10-22 José Manuel Fernandes
É bom não esquecermos quem nos colocou nesta situação de aflição absoluta e de saque fiscal

Em 2011 o Estado terá de pagar em juros 6326 milhões de euros. Mais 1344 milhões do que este ano. Isto significa que se o IVA aumentar dois pontos percentuais toda a receita adicional irá para pagar apenas este peso acrescido dos juros.

E por que é que o Estado vai ter de gastar esta enormidade de dinheiro a mais em juros? Porque a dívida pública aumentou mas, sobretudo, porque a andámos a financiar a juros proibitivos. E por que é que tivemos de aceitar juros tão elevados? Porque todos desconfiam das nossas contas públicas e porque o primeiro-ministro iludiu, meses a fio, anos a fio, qualquer rigor orçamental. O atraso no anúncio de medidas como as que foram apresentadas ao país a 29 de Setembro custar-nos-á, só em 2011, muitas centenas de milhões de euros. Provavelmente o equivalente à poupança que se espera obter reduzindo os salários dos funcionários públicos (cerca de 800 milhões de euros).

Estes números não são retóricos, antes representam apenas uma pequena parte, facilmente mensurável, do que todos teremos de pagar pela irresponsabilidade orçamental e pela política de ilusões e de mentiras dos últimos anos. É bom não nos esquecermos disto e de quem nos colocou nesta situação mesmo quando discutimos as condições para a viabilização do Orçamento de 2011.

Em 2011 cada português pagará, em média e a preços constantes, mais 20 por cento em impostos do que pagava quando José Sócrates chegou ao poder. Esta estimativa grosseira, que fiz utilizando os números da Pordata e o relatório do Orçamento de 2011, é o retrato fiel do que foi, nestes anos, a política de "consolidação orçamental": no essencial, cobrar mais impostos. Do lado das despesas, as poucas poupanças que tinham sido feitas no quadro de decisões ainda tomadas no tempo de Luís Campos e Cunha como ministro das Finanças foram completamente malbaratadas em 2009 por obra e graça de um eleitoralismo que implicou um aumento irresponsável dos funcionários públicos, acordos com as muitas corporações que tratam o Estado como coisa sua e uma mão-cheia de benesses sociais que já tiveram de ser retiradas quase na totalidade.

O que se passou prova que Passos Coelho teve razão quando, recentemente, disse que, "quando os impostos aumentam, nunca mais voltam a descer", e que "a promessa do Estado de reduzir a sua despesa é sempre uma falácia". Temos tido essa experiência com o IVA - que começou a 16 por cento e querem que salte agora para 23 por cento - e também com o IRS. Durante muitos anos foi sendo possível alimentar a voracidade crescente do "monstro" apenas por via do aumento da eficiência fiscal; porém, conforme o número dos que escapam ao fisco foi diminuindo, só restou aos governantes aumentarem as taxas dos impostos. Numa altura em que o país deixou de crescer, esta contribuição dos cidadãos e da economia para o sorvedouro público tornou-se insustentável.

As propostas do PSD para o IVA e para o IRS são por isso muito razoáveis, pois visam tornar transitório o aumento de impostos e evitar os novos aumentos que virão a seguir se não se alterar o rumo das políticas públicas. Isto porque a máquina do Estado e a lógica reivindicativa dos muitos interesses e corporações são, por definição, insaciáveis. Só impedindo o Estado de colectar mais impostos se consegue obrigar os governos a tomarem medidas para reduzir a receita. É bom não nos esquecermos disto, assim como de toda a actual voracidade fiscal e de quem nos andou a prometer o contrário nos últimos anos enquanto discutimos os detalhes do Orçamento de 2011.

Em 2011 teremos um Orçamento condicionado à batalha por contas públicas equilibradas pois isso é "absolutamente indispensável para defender o crescimento do produto e do emprego", disse no Parlamento o primeiro-ministro. A 30 de Setembro. Depois de, finalmente, ter sido obrigado a enfrentar a realidade. Depois de anos de cegueira - e de uma cegueira perigosa e autista, própria dos cegos que não querem ver.

Porém, ao contrário do que sugere, não era necessário ter chegado ao fim de Setembro para constatar o óbvio. Ou mesmo esperar pelo fim de Agosto, altura em que o ministro das Finanças disse ter acordado para o problema. No dia 1 de Janeiro de 2009, há quase dois anos, alguém sublinhou que "Portugal gasta em cada ano muito mais do que aquilo que produz", não podendo continuar "a endividar-se no estrangeiro ao ritmo dos últimos anos". Na mesma altura esse responsável sublinhou como era, e é, "importante a credibilidade que merece a nossa política interna, as perspectivas futuras do país, a confiança que o exterior tem em nós".

Foi, repito, a 1 de Janeiro de 2009. Na mensagem de Ano Novo do Presidente da República. Está lá tudo, incluindo o alerta para ter em consideração a relação "custo-benefício" nos investimentos públicos. Está também esta constatação importante e certeira: "A crise chegou quando Portugal regista oito anos consecutivos de afastamento em relação ao desenvolvimento médio dos seus parceiros europeus." Foi a década perdida.

Cavaco Silva já tinha, um ano antes (a 1 de Janeiro de 2008!) mas depois de, por altura do Natal, o primeiro-ministro ter celebrado o sucesso da sua política de consolidação orçamental, alertado para a possibilidade de não estarmos "no caminho de uma aproximação sustentada ao nível de desenvolvimento médio dos países mais avançados da Europa" - e não estávamos. Assim como tinha feito sua esta dramática interrogação dos portugueses: "Será que os sacrifícios da última meia dúzia de anos garantem um futuro melhor?" Sabemos hoje que não garantiram. Alguém tratou de, para se manter no poder, malbaratar o pouco que tinha sido conseguido.

O mesmo Cavaco Silva voltou a chamar a atenção, agora a 1 de Janeiro de 2010, 271 dias antes do anúncio do PEC3, para o nosso nível de endividamento, pois "o tempo das taxas de juro baixas não demorará muito a chegar ao fim". Sabemos hoje que já chegou ao fim.

Não é pois aceitável o discurso sobre a imprevisibilidade do que sucedeu com "os mercados" nos últimos meses. Bastava ter tido o cuidado de ouvir os avisos do Presidente - ou de tanta e tanta gente que ainda foi mais clara e mais dura - para saber que a nossa política orçamental tinha de ser credível (e não a trapalhada que tem sido, sobretudo em 2009 e 2010). Ou para prever que os juros iriam subir. Preferiu-se, em contrapartida, criticar os "bota-abaixistas" e essa opção custará anos de sofrimento económico ao país. Isto apesar de - é bom ter memória - também em Janeiro de 2009 a Standard&Poor"s ter baixado pela primeira vez o rating da República na sequência da aprovação do orçamento demencial para esse ano, sinal de que não foi só em 2010 que "os mercados" começaram a castigar Portugal num "ataque especulativo ao euro".

Basta de propaganda e de falta de memória. Pelo que é bom não nos esquecermos mesmo disto tudo. Afinal de contas, as mentiras, mesmo quando repetidas muitas vezes, não se transformam em verdades. Jornalista (twitter.com/jmf1957)


 

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