Uma vontade antecipada

DN 2010-10-14
MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO
Nas últimas décadas a vida tornou-se muito mais complexa e a morte também. Diz o povo que começamos a morrer no dia em que nascemos mas a cultura dominante foi construindo efeitos ilusórios que conduziram à quase negação do sofrimento e da morte. O aumento da esperança média de vida juntamente com mudanças sociais estruturais, as novas realidades familiares, o isolamento de um crescente número de pessoas numa fase avançada da vida, o crescimento exponencial das demências, o desaparecimento das pequenas redes de proximidade engolidas por excessos urbanísticos e o progressivo empobrecimento dos idosos mostram uma realidade bem diferente. A própria morte se modificou e o seu conceito - científico e jurídico - foi evoluindo por força do progresso da ciência e da tecnologia.
Também por tudo isto foi sentida a necessidade de reforçar as garantias quanto à própria dignidade da pessoa humana, valorizando a sua liberdade e autonomia individual, o seu direito a ser informado e a decidir, mesmo que antecipadamente, sobre a sua morte. Os diferentes ordenamentos jurídicos foram acolhendo e formalizando estas manifestações de vontade conhecidas, vulgarmente, por "Testamento Vital". Este é "o acto pessoal, unilateral e livremente revogável, titulado por documento próprio, através do qual a pessoa manifesta antecipadamente a sua vontade séria, livre e esclarecida no que concerne aos cuidados de saúde que deseja ou não receber no futuro, no caso de, por qualquer causa, se encontrar incapaz de a expressar pessoal e autonomamente".
Como bem se disse não se pretende dar a morte mas antes aceitar o facto de não a poder impedir e, obviamente, não se confunde com outras realidades como a eutanásia activa ou passiva. O que não significa que este passo importantíssimo na salvaguarda do valor da dignidade humana não seja delicado e complexo não só do ponto de vista legislativo como também cultural e social. Nem os serviços de saúde, nem as famílias, nem a percepção social destes fenómenos convergem da mesma forma para a compreensão, a expressão e a aplicação das vontades antecipadas. Daí que, da perspectiva do legislador, esta deva ser uma lei firme no seu essencial e de mão leve no que é acessório: rigorosa e clara no que respeita a situações dilemáticas, sem lacunas que obriguem a posteriores interpretações, dirimindo desde logo eventuais conflitos de interesse. O legislador não poderá, por excesso ou défice legislativo, permitir qualquer risco de pressões ou manipulações sobre o declarante sob pena de desvirtuar o objectivo último da formalização jurídica da sua respectiva vontade.
Aspectos decisivos serão, nesta perspectiva, aqueles que respeitam à forma do documento como garantia da respectiva segurança jurídica, à nomeação e aos poderes do procurador ou representante que será o intérprete da vontade do doente. Mas não menos importante é a necessidade de um grande rigor nas definições que balizam os limites das directivas, assim como a eficácia do documento para não trair a formação de uma vontade informada e esclarecida.
Os quatro projectos, apresentados pelos partidos subscritores (PS, PSD, CDS e BE), desceram, sem votação, à respectiva comissão parlamentar onde serão discutidos na especialidade. Apesar das diferenças maiores ou menores que os quatro projectos revelam é possível afirmar que em todos existe um importante substrato que pode tornar-se comum. Com muita discussão livre e esclarecida, audições e uma boa dose de humildade poder- -se-á chegar a um bom projecto-lei. Uma vitória parlamentar colectiva em nome da dignidade humana. E algo bem diferente da habitual vacuidade da temática fracturante.

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