Benefício da dúvida

DN2010-11-29 JOÃO CÉSAR DAS NEVES

O pior na crise actual é a falta de esperança. A decomposição acelerada do Governo põe todos a pensar em alternativas. Mas nenhuma granjeia um mínimo de credibilidade. As coisas estão mal e só se vislumbra que piorem. O mais grave não é o sofrimento actual. É não se ver saída.

É importante dizer que este desânimo não vem da situação real. As circunstâncias são duras mas claras. Não é difícil saber o que há a fazer. O caminho é exigente mas sem mistérios. Vivemos em décadas recentes situações bem piores de onde saímos bem. E então a desorientação e desilusão não eram tão grandes como agora. É verdade que a geração actual tem um grau de exigência diferente, sem a capacidade de trabalho e poder de encaixe dos seus pais. Mas quem não tem dinheiro não tem vícios, e quando não há escolha as condições depressa ensinam a saída.
Mesmo assim temos de admitir que as dúvidas sobre o sucesso do futuro Governo, qualquer que seja, são legítimas e justificadas. Não tanto pela dificuldade da tarefa ou falta de qualidade dos prospectivos líderes e técnicos, mas devido à manutenção das condições que nos enfiam no buraco há 15 anos. Os interesses instalados, direitos adquiridos, bloqueios regulamentares e exigências processuais não mudariam com a troca de Executivo. Os grupos de pressão souberam criar contactos em todos os partidos de poder para proteger as suas benesses. A rede que estrangula a economia, se foi apertada por Sócrates e o PS, pode bem sobreviver-lhes.
Apesar disso, com novos líderes surgiria uma inegável oportunidade que não podemos desprezar. É provável que falhe, mas temos de tentar. Mesmo com políticos maus e sob influência dos lobbies, é possível um Executivo diferente chegar onde este falhou. E a prova disso é... José Sócrates.
Quando surgem ministros novos, não envolvidos nas culpas da situação, sem necessidade de justificar erros antigos, livres de compromissos passados e ainda desconhecendo as manhas do poder, existem condições reais para reformas efectivas. Mais ainda se a população, assustada pelas circunstâncias, exige mudanças corajosas e está disponível para suportar os sacrifícios inerentes. E essas condições são em grande medida independentes da qualidade e cor política dos protagonistas. A situação portuguesa de 2005 constitui exemplo evidente.
Já poucos se lembram, mas há cinco anos vivia-se por cá uma conjuntura paralela à actual. Toda a gente sabia que a crise financeira era séria e só a austeridade nos podia salvar. A culpa ficara com o PSD, que governara de 2002 a 2004, e o recém-eleito Governo maioritário do PS prometia medidas duras e reformas radicais que eliminariam de vez o flagelo do Orçamento. O Executivo era composto por políticos implicados na gestão socialista da década anterior e no falhanço que conduzira à maioria PSD-PP de 2002. Só que, passados três anos, o novo governo aparecia como inocente, competente e empenhado. Estavam criadas as condições para a correcção da crise.
Estes factos são precisamente aqueles que desanimam muitos analistas. Constatamos que esta é a quarta vez em menos de dez anos que repetimos o mesmo cenário de crise. Apesar das promessas, as sucessivas austeridades de Guterres, Durão e duas vezes de Sócrates mostraram-se incapazes de corrigir a situação. Pior ainda, os políticos futuros vêm da mesma cepa dos que sabemos terem falhado.
Mas dizer isto é esquecer como estivemos próximo de conseguir resolver a questão. Se Sócrates tivesse feito o que prometera, se tivesse querido mesmo controlar o défice em vez de o tapar com impostos, se a atitude reformista fosse mais do que uma pose, se não se tivesse caído nos recuos das remodelações, manipulações mediáticas e trapalhadas boçais, a nossa situação seria bem diferente.
As condições que Sócrates desperdiçou em 2005 e 2006 são dificilmente reproduzíveis. Além disso, circunstâncias não bastam, e as qualidades dos decisores são cruciais. Mesmo assim é nosso dever, e uma posição realista, dar pelo menos o benefício da dúvida ao futuro Governo.

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