O direito a não saber

Público, 2010-11-30  Pedro Lomba

Façam esta pergunta a vocês mesmos: quando o Correio da Manhã, seguido do DN, transcreveram excertos de escutas denunciando as opiniões de Edite Estrela sobre os seus colegas europarlamentares, o que ficámos nós a conhecer de útil sobre o caso? Nada. Não nos tornámos cidadãos mais informados ou lúcidos por sabermos o que Edite Estrela diz em privado sobre outros socialistas, com quem porventura até costuma almoçar amenamente em Bruxelas. De permeio, destruímos um valor capital: a privacidade de um político, incluindo o seu respeitável direito à hipocrisia.
Quando o mesmo Correio da Manhã, acompanhado do semanário Sol e de outros jornais que não deixaram de ecoar essas notícias, expuseram trechos de escutas sobre as manobras de Rui Pedro Soares/José Sócrates no caso da compra da TVI e o inconcebível caso Luís Figo/Taguspark (a compra dos direitos de imagem de Figo pelo canal de uma empresa com capitais públicos), o que ficámos nós a conhecer de politicamente relevante? Obviamente, muita coisa. Pudemos julgar este primeiro-ministro com outros olhos; ficámos conhecedores de informação pública sobre o seu modus faciendi nas últimas eleições; e inteirámo-nos com mais ou menos profundidade sobre o papel auxiliar de alguns antigos administradores do Taguspark num escândalo público.
Pensemos na documentação maciça e confidencial que a organização activista WikiLeaks tem trazido desde há meses para o conhecimento geral. Uma coisa é a WikiLeaks pôr cá fora o vídeo do desastre de Bagdad em 2007, que causou 12 mortes, dois deles jornalistas da Reuters, provocado pelo disparo de um helicóptero da força aérea americana. Uma coisa são as informações reservadas, passíveis de demonstrar erros de guerra ou manipulações da opinião pública na guerra do Afeganistão. Quer gostemos quer não, são elementos que acrescentam ao debate público, mesmo que o juízo que possamos fazer sobre elas esteja ele próprio sujeito a debate.
O que não pode, em absoluto, ser confundido com estas revelações são os milhares de comunicações diplomáticas que foram entregues pela WikiLeaks a alguns jornais ocidentais, que ontem fizeram a primeira página deste jornal, e das quais se podem inferir opiniões de diplomatas ou governantes americanos sobre líderes estrangeiros, bem como o tipo de acções de espionagem que os Estados Unidos têm andado a desenvolver no mundo.
Os documentos, pretensamente cedidos por um jovem soldado americano, Bernard Manning, trazem mais estragos do que benefícios para as opiniões públicas. Em primeiro lugar, elas ameaçam a situação de militares e diplomatas americanos por esse mundo fora, e outros iguais a eles de países da NATO. Em segundo lugar, se faz parte da actividade diplomática de um Estado, e dos seus serviços de informações, recorrerem a um certo jogo de muralhas chinesas, não se percebe o que há de condenável nestas informações. Não são só as pessoas que gozam do direito à hipocrisia. Também os Estados podem ter razões legítimas para se relacionarem com outros na base dessa relação de confiança e desconfiança, fazendo política dupla e gerindo as suas alianças com cautela e suspeição.
Como ontem comentava acertadamente um blogger da revista Economist, aquilo que a WikiLeaks está a fazer chama-se simplesmente "coscuvilhice": contar à Maria aquilo que o José disse à Sandra. E voltando à pergunta com que comecei: o que é que esta iniciativa, virada para uma perigosa transparência total, nos ensina de relevante sobre a política internacional? Que os Estados Unidos conhecem de ginjeira Berlusconi ou Putin e se puseram de sobreaviso? So what?
Nós, público, temos o direito a não saber tudo, em especial de que manigâncias se faz a diplomacia de um Estado. Se alguns activistas e jornalistas pretendem eliminar esses segredos no nosso próprio interesse, são infantis e irresponsáveis. Com isso matam a confiança do público na liberdade de imprensa; e não se admirem que, quando for preciso, o público já não esteja cá para a defender. Jurista

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António