O Orçamento e os pobres

DN2010-11-04
MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO
Após tanta discussão, polémica, o que verdadeiramente está em causa neste Orçamento que o Governo socialista apresenta aos portugueses e à Assembleia da República é uma ética de governação ou, neste caso, a falta dela. É certo que toda a cultura propagada e assimilada nos últimos tempos, assente na irresponsabilidade, no consumismo e no laxismo, uma cultura do "você quer, você tem", conduziu muitas famílias (e não só) a uma desorganização de vida insustentável. Pode dizer-se que estão a sofrer as consequências. Ou, como digo e ouço, que esta crise e este Orçamento também terão efeitos terapêuticos no País de dependentes em que nos tornámos. Ou que as circunstâncias obrigam a cortes, estes e muitos mais, que o problema é geral e colectivo, nos sacrifícios e nas responsabilidades. Isto é verdade mas não impede uma distribuição tão equitativa quanto possível dos sacrifícios, antes a recomenda. Nem justifica que um Estado obeso e improdutivo queira manter essa prerrogativa à custa dos que não têm defesas de qualquer espécie.
Após anos de governação socialista e de políticas sociais, ora indigentes ora laxistas, de milhões mal gastos em prestações e apoios sociais - ou porque indevidamente dados a quem deles não necessitava, criando clientelas dependentes, ou porque não promoveram nem autonomizaram os beneficiados tornando-os meros agentes passivos de truques estatísticos - chegamos ao Orçamento para 2011 com um tecido social esgarçado.
Portugal é hoje um país de velhos, em 2011 os portugueses com menos de 15 anos serão apenas 13% da população contra 21% de idosos; de doentes crónicos com pesados gastos em medicamentos; de pobres, que já ultrapassam os fatídicos 2 milhões; de pessoas com poucas ou nenhumas competências e, portanto, de difícil reinserção; de desempregados - 700 mil com previsão de aumento para níveis históricos - muitos condenados a um desemprego de longa duração.
A nossa classe média, sem resiliência e endividada, vê-se a braços com um cúmulo devastador: a redução de salários, o aumento da carga fiscal, os cortes nas deduções fiscais e o aumento do preço de bens essenciais. Alguns extractos vão empobrecer, num movimento descendente com consequências irreparáveis para o nosso desenvolvimento humano, atingindo duramente as novas gerações.
É neste país que o Governo propôs que agregados familiares com um salário de 628 euros e 83 cêntimos fiquem sem abono de família; é neste país com uma taxa de desemprego de 10,6% - com uma previsão oficial optimista de 10,8% para 2011 - que o Governo propõe uma redução da despesa com o subsídio de desemprego de menos 6,9%; é neste país, onde há um ano se prometiam medicamentos grátis em gigantescos outdoors, que os doentes crónicos sem recursos vêm a sua terapêutica comprometida; é neste país - onde as crianças se tornaram um bem escasso - que outros gigantescos outdoors prometiam que cada uma iria aprender a falar inglês, que hoje se corta o apoio social escolar, sabendo nós que todos os dias 12% das crianças chegam à escola sem terem comido nada; é neste país onde a maioria dos velhos são pobres e doentes que se propõe a redução de pensões mínimas.
Como se não bastasse, o Orçamento prepara-se para desferir um golpe mortal na maior rede de solidariedade nacional, as Misericórdias e as IPSS, que passarão a pagar 33,3% de Taxa Contributiva e deixarão de ter o reembolso do IVA (mais 23%). O que comprometerá o aumento da taxa de cobertura nacional em equipamentos indispensáveis, restringindo o acesso dos cidadãos mais carenciados.
Posto isto, as negociações levadas a cabo pelo PSD fazem sentido. Nem interessa desvalorizar a dimensão ou o impacto das alterações negociadas. Aqui, o que é relevante, após a pressão irracional para aceitar sem mais um mau Orçamento, mal feito, iníquo e passível da maior desconfiança, vindo das mãos de um governo que fez da mentira um modo de vida, é a tentativa e o resultado de recentrar a questão no essencial. E nem que fosse só isso, já teria valido a pena.

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