A centralidade de Deus

MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO
DN, 09 Dezembro 2010
O livro-entrevista Luz do Mundo resultou de uma longa conversa entre o jornalista Peter Seewald e o Papa Bento XVI. É a primeira vez que um Sumo Pontífice aceita fazer um trabalho deste género e se submete ao fio das perguntas de um profissional dos meios de comunicação. O jornalista conheceu bem o cardeal Ratzinger, mas nesta entrvista é Bento XVI, o Papa, que fala, dispensando as distâncias que protegem os mitos, sem medo pelas consequências do discurso directo, das perguntas e das respostas, da assumpção da sua condição humana, sujeita a receios e a dúvidas perante a enormidade da missão que lhe foi confiada por Deus e do sentido de um pontificado num tempo de sinais contraditórios.
Nada disto, porém, esteve na origem do impacto mediático do livro. Foram as referências ao preservativo que ganharam um peso quase exclusivo para os meios de comunicação, analistas, cronistas, comentadores o que levou, e bem, o autor Peter Seewald a considerar o facto, penoso e ridículo. Sem eco mediático ficaram as outras questões, todas elas mais importantes para a reflexão sobre o estado do mundo, os sinais dos tempos, o valor das mudanças e a condição humana num contexto cada vez mais descarnado de valores essenciais à sua dignidade. Seja a situação actual da Igreja, os recentes escândalos de pedofilia, o celibato dos padres ou a não ordenação das mulheres, seja o diálogo inter-religioso, o ecumenismo, a indissolubilidade do matrimónio ou a ecologia.
Que o Papa sugira a necessidade de uma reflexão sobre a proibição de pessoas divorciadas, que voltaram a casar, não poderem comungar, ou afirme que, em certas circunstâncias precisas, o Papa pode e deve, renunciar, é, quanto a mim, algo muito mais audacioso. Que Bento XVI, com coragem e lucidez, refira a verdadeira ameaça perante a qual nos encontramos de uma hegemonia prepotente da chamada razão ocidental, que em nome da tolerância procura abolir a própria tolerância, ou relembre com uma simplicidade extrema, que " Temos sobretudo de procurar que as pessoas não percam Deus de vista..." é, quanto a mim, muito mais elucidativo.
Sabemos que estamos submersos numa cultura adversa a toda a espiritualidade, que despe e esvazia o sentido último da nossa existência como seres humanos, em sociedades dominadas pelo acessório, pelo materialismo mais grosseiro, o consumismo mais desesperado e o desperdício mais iníquo. Por isso, a mensagem desta riquíssima entrevista é uma verdadeira oferta de esperança. Mas talvez por interpelar tão forte e abertamente, não seja simples aceitá-la. Eu, confesso, limitei-me a deixá-la às voltas, entre o meu coração e a minha cabeça.
Quando na manhã do dia seguinte soube da morte de Êrnani Lopes ataram-se as pontas dos meus hesitantes pensamentos e tudo ficou claro. Ele, que era um homem especial, de excepção, controverso, multimodal, prospectivo e que na sua vida pessoal, profissional e política deixou sempre uma marca própria, humanista como tantos referiram, nunca perdera Deus de vista. O mais revelador, para mim, foi a exemplaridade na vida e na morte. Uma coincidência rigorosa entre a sua fé e o seu testemunho, sem qualquer alarde, apenas a força dos actos e das palavras. Nos anos da doença nem se encarniçou contra a morte, nem se submeteu: viveu-a habitualmente. Falava da doença sem acinte mas com serenidade como quem não duvida que só Deus marcaria o seu tempo e o seu modo. Ainda há bem pouco tempo, na Assembleia da República, falando no e para o futuro, fez questão de precisar que sabia que já não estaria nele. Mas isso não reduziu o ênfase e o entusiasmo que pôs nas suas palavras de conferencista. Foi esta intimidade com Deus, esta centralidade que emanava dele o que mais me tocou, firme e inteira, nestes tempos em que a secura dos sentimentos, a recusa da transcendência, a fuga a própria interioridade vão transformando os filhos das sociedades da comunicação e da abundância, em reféns do medo, da solidão e do desespero.

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