"Pro-choice" sim; "pro-choice não"

Público, 2010-12-04  Mário Pinto
O Governo de Sócrates não dá nem autonomia nem vida previsível até mesmo às escolas públicas, como devia

1. Inesperadamente, sem negociação, sem ouvir os parceiros sociais, sem ouvir o Conselho Nacional de Educação, sem ligar importância à Assembleia da República, sem anunciar publicamente - ele, que tudo anuncia -, José Sócrates aprova e envia para promulgação do Presidente da República um projecto de decreto-lei do Governo que derroga disposições operativas fundamentais do actual regime legal das liberdades de ensino, constituído por diplomas que foram laboriosamente discutidos e votados anteriormente, e estão em vigor pacificamente desde há 30 anos a esta parte, com consenso de todos os partidos do arco democrático, PS, PSD e CDS, algum deles da iniciativa do PS de Mário Soares - só o PCP se opôs a esses diplomas.

2. Designadamente artigos praticamente decisivos do chamado Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo e da Lei da Gratuitidade do Ensino Obrigatório. O primeiro, um diploma de 1980 aprovado pelo Governo Sá Carneiro para desenvolver leis da Assembleia da República, a Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo e a Lei da Liberdade de Ensino (9/79 e 65/79), aprovadas pelos três partidos, PS, PSD e CDS; e o segundo, um diploma aprovado pelo Governo Cavaco Silva e sendo ministro da Educação Roberto Carneiro. Estes dois diplomas ficam derrogados nas suas disposições operativas - tudo fica a depender das decisões arbitrárias e casuístas de portarias ministeriais. Razão teve o Presidente da República quando comentou que não se deve introduzir imprevisibilidade na relação do Governo com os cidadãos; mas imprevisibilidade é palavra diplomática e gentil; o que neste caso se introduz é a pura arbitrariedade. Aliás, o Governo de Sócrates não dá nem autonomia nem vida previsível até mesmo às escolas públicas, como devia.

3. Vital Moreira já tinha anunciado que a crise era uma boa oportunidade para uma "golpada" legislativa contra o ensino privado. E José Sócrates já tinha revelado o que pensa da escolha da escola privada, quando, nos debates durante a campanha eleitoral para as eleições parlamentares, respondeu a Paulo Portas, no debate na TVI, dizendo textualmente: "A liberdade de escolha [da escola] é pura demagogia." Pois é: pro-choice é para o aborto; o género; a eutanásia; o testamento vital; e as outras escolhas da sua predilecção, mesmo quando custam dinheiro aos contribuintes. Mas pro-choice não é para a escola - apesar de esta escolha ser uma liberdade expressamente inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Uma mulher pode escolher abortar e o Estado português paga-lhe os custos desta escolha; mas se deixar nascer o filho, não tem direito de escolher a escola para o educar, o Estado não lhe paga os custos da sua escolha.

4. Porém, a questão não é de cortes financeiros. Aliás, o custo do ensino nas escolas do Estado é superior, por aluno, ao das escolas privadas - embora não seja esta razão económica a razão essencial que justifica a liberdade de os alunos escolherem as escolas privadas. A questão é que, aproveitando o pretexto dos cortes financeiros, se pretende retirar ao ensino privado as modestas liberdades que estão legalmente em vigor. O que se pretende é revogar direitos de liberdade e aumentar a discriminação e o monopólio da escola estatal. Se fosse apenas uma questão de redução de subsídios, as negociações em curso com os representantes das escolas privadas chegariam a um acordo.

5. Depois de ter afundado o país em défice público e em dívida, depois das públicas tentativas de intromissão na comunicação social, depois de um calvário de incidentes escandalosos como nunca dantes na nossa democracia, José Sócrates desdobra-se em provocações políticas, como se quisesse que o retirassem de cena de modo que ele pudesse vitimizar-se. Para evitar o sucesso destas "montagens", prolongar o período da dominação de Sócrates sobre o PS e sobre o país vai-nos custar muito, de bem-estar económico-social e de liberdades. Resta-nos esperar por Jaime Gama, Luís Amado, José Seguro ou outro futuro líder do PS, para restaurar a anterior linha de muitos anos do socialismo de Mário Soares, Guterres, Sampaio e outros, que, sem deixar de ser enérgico socialismo sul-europeu, anti-social-democracia, contudo, mesmo assim, foi quase sempre moderado e tolerante para com a liberdade de iniciativa privada, cumpridor do Estado de direito democrático nos domínios da comunicação social e do ensino, como nos demais, e capaz de conflituar civilizadamente com os outros partidos, não em crise e em guerrilha provocatória permanente. Já nos chega de stress político. A democracia é vida política de oposições partidárias duras mas civilizadas e normais, no Parlamento, e de Governo com sentido de Estado; não é um assédio governativo permanente aos partidos das oposições e à sociedade civil. O país não vai ter saudades de Sócrates, que já não vai conseguir ficar bem na história. Professor universitário

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