O poder do cinismo

DN 2011-05-02
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Os tempos, como os povos e indivíduos, têm emoções, atitudes, estados de alma. Há épocas exaltadas, apáticas, heróicas, corruptas, apodrecidas. Portugal hoje parece entrar numa das mais perigosas, um tempo cínico.
A crise, impasse político, sofrimento e desilusão são motivos compreensíveis para isso. Fomos sucessivamente enganados, extorquidos, prejudicados. Percebe-se a perda de confiança. Mas ser compreensível não chega para o justificar. A atitude, em si mesma, é um vício tão sério que nada, por grave que seja, o legitima. Um cínico engana, extorque, prejudica. Mesmo roubando a ladrão não tem perdão.
O cinismo é a condição de quem não acredita nas boas intenções alheias ou, no limite, duvida até da presença de bondade no mundo. Em qualquer circunstância, vê sempre na realidade os aspectos mais baixos e interesseiros. A suspeita apresenta-se como prudência, mas não é sabedoria que a inspira. É pedantismo.
As formas comuns de cinismo ligam-se a dois raciocínios. O primeiro é assumir que já se sabe, antes mesmo de ver. Naturalmente sabe-se que é mau, egoísta, torpe. Mas saber sem experimentar é estulto. O cínico ventila preconceitos, não pondera razões.
O segundo raciocínio é assumir, a partir de pequeno pormenor, que se entende irremediavelmente o carácter alheio. Mais uma vez trata-se de uma forma de avaliar expedita, mas sumamente injusta. Se o cínico fosse assim tratado sentiria logo o agravo. Ele sabe ter personalidade complexa e variada, com múltiplos cambiantes e deslizes compreensíveis. Não tem pois o direito de condenar os outros da maneira apressada e injustificada.
Constatamos hoje o cinismo em múltiplas formas. Os juízos sobre políticos, banqueiros e empresários são taxativos e devastadores na boca de qualquer ignorante. Toda a gente sabe que isto é tudo uma corja, mesmo sem saber nada acerca daquilo que comenta. Dos poderosos salta-se sem dificuldade para funcionários, sindicatos, partidos, clientes, profissionais, cidadãos em geral. Não tarda desconfia-se de tudo e todos, vendo-se conspirações em cada esquina. É este o veneno do cinismo. Denuncia-se e apregoa-se o mal. Não se promove o bem.
Para lá da origem, existem dois canais de propagação que merecem consideração. O primeiro é o enviesamento jornalístico. Uma boa notícia nunca é notícia. Pelo contrário, um crime, acidente, desgraça ou descuido criam parangonas. Existem milhares de responsáveis e dirigentes honestos e competentes, mas a classe acaba representada pelas poucas maçãs podres que os jornais detectam. Vivendo há décadas na sociedade mediática, não aprendemos ainda a deixar de extrapolar do que vemos na comunicação social para a realidade. O que nos dizem é o estranho, aberrante, anormal. Só por isso mereceu a atenção mediática.
Esta distorção é antiga e jogou papel decisivo no período mais cínico da vida nacional, o século de 1828 a 1928. Em certos casos esse cinismo atingiu até expressão artística, como nas caricaturas de Bordalo, n'As Farpas de Ramalho e Eça e n'Os Gatos de Fialho. Mesmo assim não deixou de ser sumamente negativo.
O nosso tempo juntou a esta outra deformação, a que podemos chamar o enviesamento lúdico. Hoje não é só pelo telejornal que as piores atrocidades e aldrabices nos entram em casa. É também nos filmes e séries televisivas. O tema dominante desses divertimentos é hoje invariavelmente hospitais, tribunais e esquadras. É espantoso como tanta gente pacata decide terminar a noite, no sofá, vivendo em locais onde teria detestado passar o dia. Mas, por isso mesmo, basta ligar o televisor para se verem descrições realistas de massacres, estupros, embustes e agressões. Não admira que se duvide da bondade no mundo.
O cinismo é doença grave, e o mal é a vítima julgar-se sábia caindo em falácias. Em boa medida ele é muito mais sério que o endividamento financeiro, estagnação económica ou desorientação política. Aliás, em boa medida, é já a ele que devemos esses males. Por isso, o cinismo é hoje o maior obstáculo para se sair da crise.

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