Os poderosos e a justiça

Público 2011-05-19  Pedro Lomba

Para começar, as pessoas podem dizer-se chocadas com a forma como a polícia de Nova Iorque tratou Dominique Strauss-Khan. O homem foi detido, algemado, preso. E depois fotografado pela imprensa nessa baixa condição, ou não estivesse aquele homem caído prestes a enfrentar o mais cruel dos embates que a sociedade americana reserva para os que transgridem (ou se pensa que transgridem).

As pessoas podem escrever muitas das reacções pavorosas, absurdas, que têm saído nos últimos dias na imprensa francesa e menos na imprensa portuguesa. Eis o intelectual-caviar Bernard Henry Levy: "Seria bom saber", diz ele, "e sem demora - como é uma camareira pode ter entrado sozinha, contra a prática habitual da maioria dos grandes hotéis de Nova Iorque de enviarem uma "brigada de limpeza" de duas pessoas, para o quarto de uma das mais vigiadas figuras do planeta."

Podem afirmar também, como fez nas páginas do jornal Liberátion um romancista desconhecido mas com nome português, Luís de Miranda, para quem Strauss-Khan mostrou ser um "herói filosófico". Podem ainda atirar-se ao puritanismo americano, lembrando histórias recentes como a perseguição judicial contra Bill Clinton. E podem definitivamente dizer, como fez Miguel Sousa Tavares na SIC, que a justiça penal americana é herdeira do "faroeste", cruel, bárbara, desumana.

Mas às pessoas eu gostaria, com permissão, de lembrar dois pontos.

Em primeiro lugar, a ideia de que na América se pratica o puritanismo em doses bovinas, bem acima da Europa, não é simplesmente verdadeira. Em Inglaterra um membro do governo vítima de um escândalo sexual é imediatamente posto fora. O incrível Berlusconi está há meses sob pressão política e judicial por causa das suas festas de Calígula. E quanto a Clinton, é preciso lembrar que ele não foi sujeito a nenhum impeachment por ter abusado da estagiária, mas por acusações de perjúrio e obstrução de justiça. Acabou por escapar a tudo. Não somos todos iguais, claro que não. Mas o confronto América-Europa nesses termos sofre de um simplismo atroz.

Em segundo lugar, a justiça penal nos Estados Unidos é violenta, dura, o que quiserem. Mas convém perceber porquê. No século XIX, Tocqueville foi o primeiro a compreendê-lo. Explicou ele que a diferença entre a cultura americana e europeia residia na ausência de uma verdadeira aristocracia e hierarquia social na América. Esse facto tornaria ali a lei penal mais dura que na Europa.

As razões são históricas. Enquanto na Europa as legislações penais modernas tinham atrás práticas de punição que diferiam consoante o status dos indivíduos e por isso reagiram contra essa mesma estratificação social, na América não foi assim. A América acabou por generalizar formas de tratamento e punição severas contra todos. Não existem potenciais criminosos de primeira ou segunda. O que existe é uma sociedade historicamente mais igualitária na aplicação da lei e na retribuição do crime.

Já na Europa a realidade é bem diferente e, em especial em França, o facto conduziu a um padrão de evolução e tratamento penal que sempre definiu classes especiais de infractores, sujeitos a regimes também especiais e diferenciados.

Significativamente, algumas reacções escandalizadas com a imagem de um Strauss-Khan algemado esquecem que, para os americanos, não existe isso de "um dos homens mais importantes do planeta". As leis na América não são o que são porque falte ordem ou porque vigore a lei do mais forte, mas porque a sociedade americana é essencialmente igualitária na distribuição da culpa e nas suas práticas de punição. Nasceu assim. Que o digam O. J. Simpson e tantos outros poderosos que acabaram amarrados à justiça. Um bocado de mais igualdade não nos faria mal. Jurista

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