Até os cépticos estão a ficar preocupados com o futuro da Europa

Público 2011-06-17 José Manuel Fernandes
O problema europeu não é uma crise de "falta de lideranças", corresponde sim ao crescente divórcio dos eleitorados

Estamos tão preocupados em perceber até que ponto a nova maioria saída das eleições de 5 de Junho consegue estar à altura das expectativas - e felizmente que os sinais já conhecidos são positivos - que não temos dado suficiente atenção a um mundo que se desmorona à nossa volta. Mas como é sempre possível que o pior aconteça, vou deixar de lado a escolha do próximo ministro das Finanças de Portugal para partilhar algumas inquietações sobre o não-existente ministro das Finanças da Europa.

Esta semana, o economista que previu a crise financeira, Nouriel Roubini, escreveu num blogue do Financial Times que a zona euro se estava a desfazer, sendo muito provável que, depois de uma inescapável reestruturação das dívidas da Grécia e de Portugal, estes dois países tivessem de sair da moeda única. Mais do que esta conclusão, o importante é perceber o racional do argumento de Roubini, que é muito poderoso. Aquele economista começa por lembrar que todas as uniões monetárias que tiveram sucesso foram acompanhadas por um grau de união política e união económica que a Europa não atingiu nem é previsível que possa atingir pela razão simples que os eleitores dos grandes países europeus nunca aceitariam, por exemplo, a criação de mecanismos automáticos de transferências financeiras entre Estados como os necessários numa crise como a actual. Por outro lado, Roubini não acredita que, mesmo reestruturando as suas dívidas, países como a Grécia ou Portugal consigam recuperar a competitividade e voltar a convergir com a Europa mais desenvolvida, o que o conduz à terrível conclusão: a saída do euro e a aceitação de uma tremenda desvalorização das respectivas moedas acabarão por surgir como as únicas saídas possíveis para Portugal e para a Grécia. Escusado será dizer que isso, se suceder, terá um custo ainda hoje impensável.

O raciocínio económico de Roubini é sólido e convém não menosprezar os seus argumentos com o mesmo tipo de soberana indiferença com que, em Portugal, se menosprezaram as previsões de Medina Carreira. Mesmo assim, há que ressalvar um aspecto: esse argumento pressupõe que não haverá mais integração europeia. Isto é, que não haverá nem governo económico europeu, nem eurobonds, nem um verdadeiro orçamento federal. Mas será que, confrontados com o desastre iminente, os líderes europeus não terão um sobressalto? É pouco provável, mas não pelas razões que costumam ser apontadas.

Os ventos que hoje sopram na Europa vão no sentido da desintegração, não da União. Porém, ao contrário do que é costume dizer e escrever, isso não sucede apenas porque "faltam grandes líderes" ou porque "falta uma visão". Ontem, no Guardian, Timothy Garton Ash era muito mais certeiro ao lembrar que todos os factores que motivaram os líderes europeus no tempo de Kohl, Mitterrand ou Delors desapareceram. Já não há uma ameaça soviética capaz de catalisar a solidariedade europeia; os Estados Unidos já não apostam da mesma forma na unificação da Europa; a memória da guerra, da ocupação, das ditaduras e do Holocausto já é uma recordação longínqua, não uma experiência vivida na pele; os alemães já não sentem que tenham de continuar a penar as suas culpas; e por aí adiante. Antes o caminho para a unidade europeia baseava-se num sentimento partilhado, próprio de uma época com outras memórias, outros medos e outras prioridades. Hoje a "visão europeia" é uma construção intelectual que nem sequer coincide com as preocupações imediatas dos cidadãos.

O problema não está em a Europa hoje falhar na ajuda aos rebeldes da Líbia - a Europa de Kohl e Miterrand também soçobrou nos Balcãs e em Sarajevo -, o problema está em a Europa falhar em Lampedusa ao reerguer os controlos fronteiriços só por causa de uns milhares de refugiados. O problema também não está na desunião das lideranças, pois não faltaram momentos críticos no passado; o problema está em que por todo o lado os eleitorados enviam sinais contrários a um caminho de maior integração. Por essa Europa fora, sopram ventos de nacionalismo e localismo, da Escócia à Finlândia, do País Basco à Holanda, da Suécia à Lombardia, da Catalunha à Flandres. Mais: todas as microcrises ganham com facilidade contornos de conflitos nacionais, como vimos de novo no caso dos pepinos-que-afinal-não-eram-assassinos.

A situação actual da Europa é, pois, muito diferente da dos tempos em que esses mesmos Kohl e Miterrand criavam novas realidades económicas - como a moeda unida - em função de prioridades políticas. Como também lembrava Timothy Garton Ash, desta vez as prioridades são económicas: "para salvar uma união monetária demasiado alargada e mal concebida, necessitamos de um empenho político excepcional". De quem? Da Alemanha e da senhora Merkel, acrescentava aquele autor. Talvez nem assim, acrescento eu.

A situação em que a Europa se colocou é muito perigosa e, a meu ver, insustentável. O que se está a passar é simples: na Grécia ou em Portugal, os cidadãos estão a ser levados a sentir que o seu destino já não lhes pertence, pois têm de aceitar políticas impostas pela União Europeia, pela Alemanha ou, até, pela pequena Finlândia; já na Alemanha ou na Finlândia, os cidadãos receiam perder o controlo sobre o destino dos seus impostos porque os gregos e os portugueses andaram a gastar como cigarras. Quer num lado, quer no outro, cresce a incomodidade com sistemas democráticos que, no fundo, parecem não ser capazes de traduzir a "vontade do povo".

É neste quadro que me interrogo sobre a viabilidade de acelerar o caminho para a federalização das políticas europeias, criando o famoso "governo económico" ou inventando um "ministro das Finanças" como sugeriu o presidente do Banco Central. Mais: a meu ver, isso é impossível porque a relação das instituições europeias com os cidadãos do Velho Continente não é mesma que têm as instituições de uma democracia com os cidadãos de cada país. Podia acumular argumentos a sustentar esta tese, mas dou apenas um: os tratados europeus não asseguram o cumprimento da única das condições considerada central por Karl Popper para uma democracia ser uma democracia, isto é, não permitem que os eleitores europeus, querendo, afastem pacificamente os governantes europeus. Sócrates foi a votos e caiu, mas não há forma de levar Durão Barroso a votos e forçar a sua demissão. Ou, o que é porventura ainda mais importante, forçar pelo voto uma mudança de política em Bruxelas.

O sonho de Miterrand e de Kohl era o de tornar eterna a paz por via da integração económica e monetária. O nosso pesadelo é perceber que as dificuldades da integração monetária estão as despertar os velhos fantasmas da discórdia eterna. Se não percebermos isto, nunca perceberemos que os grandes líderes não são os que persistem no caminho errado, mas o que sabem arrepiar caminho quando isso se impõe. Era por isso bom que não déssemos apenas razão a Roubini depois de acontecer o desastre que se perfila no horizonte. Jornalista

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