Este querido mês de Agosto

Público 2011-08-12 José Manuel Fernandes
O debate político mudou em Portugal. Mudou o estilo, mas mudou também o conteúdo e mudaram as prioridades

Isto não está a correr como previsto. Ou, pelo menos, como alguns tinham sonhado. Os passes sociais aumentaram, e muito, e por junto os protestos não foram além de uma trintena de pessoas ("utentes"). Acabaram as borlas de Agosto na Ponte 25 de Abril (que castigavam os utentes regulares dos outros meses do ano e premiavam os veraneantes) e o buzinão não chegou sequer a ser pífio. O povo, pelos vistos, não se revolta. Nem parece muito indignado. Prefere andar por aí a cantar, com Dino Meira: "Meu querido mês de Agosto/Por ti levo o ano inteiro a sonhar..."
É verdade, é Agosto, suspiram alguns. Que até condescendem: "Aproveitemos as férias para descansar. Depois de Agosto, todas as forças vão ser necessárias para lutar", escreveu numa nova revista, The Printed Blog, Ricardo Santos Pinto, do 5 Dias. Depois, acrescentou, "urge transformar Portugal numa nova Grécia" - ou numa "nova Inglaterra", como se apressou a corrigir. É um programa que diz tudo, ou que diz alto o que muitos sonham em surdina.
O argumento civilizado, politicamente correcto, é um pouco diferente. Segue pelo caminho de um Miguel Sousa Tavares regressado de férias muito desiludido com o país: "Tivessem sido José Sócrates e Teixeira dos Santos a fazer um décimo das maldades que este governo já fez aos portugueses em pouco mais de um mês, e teríamos as multidões na rua e a imprensa aos gritos". Ele, como muitos, não percebeu que, entretanto, o país parece mesmo querer mudar, e que isso nem sequer começou com o voto de 5 de Junho.
Aqui há uns anos, um alto responsável comentava comigo as dificuldades que os políticos tinham em lidar com as expectativas. Preocupado (dizia ele...) com o nível de endividamento dos cidadãos, assumia não saber o que dizer a uma operária têxtil, por exemplo, que lhe justificasse uma dívida incomportável com o seu direito a ter automóvel. No entanto podia ter-lhe dito uma coisa muito simples: não há dinheiro para tudo; e nem tudo o que ainda não possuímos é apenas um direito que não foi realizado.
Nos últimos anos, com atraso e com dor, os portugueses foram aprendendo por si mesmos o que estes responsáveis não tiveram coragem de lhes dizer. Aprenderam quando começaram a ver os salários serem penhorados por causa das prestações do plasma lá de casa. Ou quando começaram a ver o desemprego subir. Perceberam quando aceitaram perder regalias ou até diminuir salários para salvar postos de trabalho. Ou quando começaram a deixar o carro à porta de casa e voltaram a utilizar transportes colectivos. Ou ainda quando começaram a fazer, nas suas vidas privadas, aquilo que o Estado terá de fazer agora: apertar o cinto.
O que mudou em Portugal, nos últimos anos, foi ter acabado o tempo em que se acreditava que o dinheiro chegava sempre para tudo. Sobretudo o dinheiro do Estado. Foi uma aprendizagem que começou com Manuela Ferreira Leite, continuou com Campos e Cunha e hoje se tornou consensual. Um ponto central dessa aprendizagem passou por uma mudança crucial: em Portugal vivia-se na ilusão de que o dinheiro do Estado como que nascia do chão, que não era dinheiro dos cidadãos, e que se podia exigir sempre mais; após sofrer os efeitos de sucessivos aumentos de impostos, mesmo o país pobre e dependente já começa a perceber que, para ter mais serviços públicos, terá de descontar mais nos ordenados ou de pagar mais IVA. Antes pensava-se que os almoços eram grátis, agora começa-se a ter uma ideia do seu preço.
Por isso, como diria Margaret Thatcher, o tempo das políticas socialistas acabou porque "eles gastaram todo o dinheiro dos outros". O dinheiro dos cidadãos-contribuintes.
Se quiséssemos sintetizar o espírito do tempo numa só frase, talvez a melhor fosse que "o que tem de ser tem muita força". Chame-se "o que tem de ser" acordo da troika ou corte das despesas públicas. Basta ver como o debate público mudou de registo e de foco.
A mudança de registo não é um detalhe nem uma idiossincrasia própria dos novos governantes e da nova oposição: é uma exigência dos tempos. Os cidadãos toleram a arrogância como forma de fazer política quando os políticos distribuem benesses, mas abominam-na na hora dos sacrifícios. Foi também por isso que o tempo de Sócrates acabou e, como aqui escrevi em Março, foi "preciso abrir as janelas para deixar sair o ar contaminado", foi necessário "regressar a uma política mais respirável, a um espaço público menos condicionado por jogadas baixas e jogos de spin". A mudança de ciclo político tornou isso possível, e não apenas por causa da forma de ser de Passos Coelho ou da evolução do PS.
Mudou também o foco do debate político. Já não se discute o que é que o Estado vai fazer, mas o que é que o Estado deve deixar de fazer. Já não se exige ao Governo que construa, subsidie, apoie ou crie postos de trabalho, antes que encolha a sua esfera de actuação, que feche serviços, que reduza os subsídios, que suspenda as obras, que seja poupado e austero e se foque no essencial. É uma mudança extraordinária: um extraterrestre que tivesse assistido à campanha de 2009 e hoje regressasse a Portugal não reconheceria o registo do debate público. Ninguém deve subestimar esta mudança.
Há hoje um importante elemento de verdade quando se diz que Portugal não é a Grécia: é que em Atenas há um governo que não acredita nas políticas que está obrigado a levar por diante e em Lisboa um executivo que acredita nas medidas que está a tomar. Se a troika tinha pressa, Passos Coelho tem muita pressa. Se os nossos credores exigem mudanças profundas, os nossos governantes sonham e planeiam reformas ainda mais radicais. Tudo, para já, em relativa sintonia com a tal percepção popular de que "o que tem de ser tem muita força". E sem grandes disfarces no discurso: o povo sabe que tem pela frente tempos difíceis e o governo diz-lhe que não se compromete com "sacrifícios suaves". É melhor assim, mas é bom ter sempre presente que estes tempos são muito exigentes para quem governa.
Numa altura de grandes apertos, é preciso ir sempre mais longe e ser-se mais exigente do que se imagina. Repare-se no exemplo do site das nomeações: é um enorme salto de transparência face às práticas anteriores, mas exige-se-lhe mais, pois pedem-se currículos e critérios para cada remuneração. Surpreendidos? Talvez, mas habituem-se... E percebam porque é que foi tão negativa a forma como foram nomeados os novos gestores da Caixa Geral de Depósitos.
De resto, um Estado que faça menos deve dar espaço a uma sociedade que faça mais. Na economia isso chama-se liberalismo. Nas funções sociais isso implica tratar a sociedade civil como parceira e promover a substituição da cultura de dependência por uma cultura de responsabilidade. Tendo sempre presente que os cidadãos estão cada vez mais atentos aos exemplos que vêm de cima. Mesmo em Agosto.
Mesmo neste querido mês de Agosto. Jornalista

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