Put the blame on Mame boys

Público 2011-08-11  Helena Matos
O que está a acontecer em Inglaterra tem muito mais a ver com responsabilidade do que com culpa

"Podemos culpar Sarkozy, Merkel e Cameron pelo clima que provocou atentados de Oslo?" - perguntava em título a edição do PÚBLICO de 31 de Julho de 2011. Cabe perguntar porque haverá a culpa de ser atribuída a Sarkozy, Merkel e Cameron e não a Zapatero, Blair ou George Papandreou. Talvez porque Sarkozy, Merkel e Cameron mostraram reservas em relação ao modelo dito do "multiculturalismo". Não sei se agora alguém vai perguntar se podemos culpar Zapatero, Blair ou George Papandreou pelo que está a suceder em Londres, mas espero bem que tal não suceda. Não só porque não faz sentido algum, mas sobretudo porque este discurso da cascata de culpas mais não tem feito do que legitimar o crime e desculpar os criminosos.
A invocação da cascata das culpas alheias para desculpar determinados grupos tornou-se um dos traços mais comuns ao pensamento tido como progressista na Europa. Mortes, destruição e vandalismo têm sido desculpados por causa da cor da pele dos seus autores, porque os pais os amaram de mais ou de menos, porque nasceram naquele bairro e não noutro, porque alguém olhou para eles ou porque desviam o olhar quando eles passam, porque são pobres, porque não têm perspectivas etc... etc... Pior, a responsabilidade destes actos é transferida dos seus autores para os líderes políticos (sobretudo se estes não forem de esquerda, tornam-se nos bodes expiatórios óbvios) e para as polícias que são sempre culpadas de actuar, de não actuar ou simplesmente de existir.
Criou-se mesmo um sociolecto para referir estes actos que lhes atenua a gravidade: deixaram de ser referidos como crimes e passaram a "incidentes". Incidente tanto pode ser agora uma discussão como um esfaqueamento. Quando os tiros, as facadas e alguns carros queimados tornam inadequadamente ridículo o termo "incidentes", entramos no domínio da "exacerbação dos ânimos". O mais espantoso na teoria da exacerbação dos ânimos ocorre quando somos informados que a polícia teve também os seus ânimos exacerbados e consequentemente "envolveu-se" nos confrontos, que assim ficam mais do que legitimados para se reacenderem a qualquer momento, pois os ânimos tal como a nitroglicerina estão sempre disponíveis para se reacenderem. Para evitar reacender os ânimos e ser acusada de envolvimento, nos primeiros dias dos confrontos a polícia britânica comportou-se como se estivesse a ver um filme: limitou-se a assistir - assistiu não apenas aos saques e aos incêndios, mas também às agressões como sucedeu em Ealing.
Até este "Acordo Lexical para Mascarar a Realidade" se ter tornado lei, qualquer falante diria que a expressão "ânimos exacerbados" correspondia a uma discussão sem outras consequências que o elevar da voz, mas agora pode englobar confrontos violentos e homicídios, desde que os ânimos se exacerbem nos bairros que segundo as regras deste falar são problemáticos e onde vivem pessoas de diferentes etnias. Note-se que a pertença étnica, para além de ser uma forma arrevesada deste sociologuês para referir os negros e os ciganos, é também um traço distintivo que só é usado em relação a determinados meios sociais. Em Portugal, por exemplo, os abastados compradores do BPN são referidos como angolanos, mas se para azar deles vivessem na Quinta do Mocho, passavam automaticamente a ser identificados como "pessoas de etnia africana".
Esta tresnoitada mania de que tudo é ou pode ser racismo, discriminação ou qualquer outra coisa nefanda levou a que nada seja referido pelo seu nome. O resultado é naturalmente pateta e patético e sobretudo de um paternalismo insuportável. Não por acaso o único criminoso identificado enquanto tal nos últimos tempos foi o autor do massacre da Noruega, Anders Breivik. Não fosse ele louro, branco e ter olhos azuis e a culpa dos seus actos haveria de ser dos noruegueses, porque caçam baleias, porque exploram petróleo, porque são ricos, porque são uma monarquia e não contentes com isso têm uma religião de Estado sendo o rei, para cúmulo, o chefe dessa mesma Igreja. Ou por uma outra coisa qualquer. Assim, com aquele ar ariano Anders Breivik é tratado como aquilo que de facto é - o autor de um acto hediondo - e por uma única vez somos poupados à cartilha desculpabilizante sobre a sua cor, a sua infância, a sua família e a sua pobreza ou riqueza.
Neste delirante estado de coisas não admira que praticamente os únicos que em Inglaterra se organizaram para resistir aos presentes actos de vandalismo tenham sido estrangeiros ou seus descendentes: comerciantes turcos e paquistaneses que não queriam ver os seus comércios destruídos, muçulmanos e sikhs que se recusaram a ver os seus templos profanados. Caso algum católico ou protestante tivesse tomado esta iniciativa, e se para cúmulo do azar ainda fosse branco, teria sido colocado imediatamente ao mesmo nível que os agressores, passando automaticamente a ser tratado como um perigoso instigador de milícias cristãs. É certo que a dimensão do que está a suceder em Inglaterra, a par das imagens aviltantes dos protagonistas destruindo o ganha-pão dos comerciantes, roubando pessoas feridas e carregando computadores e telemóveis caríssimos, torna inverosímil o discurso sobre a pobreza dos autores destes actos. Salienta-se até que, ao contrário doutros "incidentes" anteriores, este não tem motivos políticos. Cabe perguntar se algum motivo político poderia justificar o que está a suceder em Inglaterra, ou se é moralmente aceitável que ele seja invocado, como sucede com a kalle borroka no País Basco? Na minha opinião não.
Contudo, o que está a acontecer em Inglaterra tem muito mais a ver com responsabilidade do que com culpa. Não há política social ou opção educativa que funcione, quando as famílias não sabem, não querem saber ou não conseguem saber o que andam, no meio da noite, os seus filhos a fazer nas ruas. Tal como não há intervenção policial adequada, quando aqueles que agridem, roubam e destroem agem como se acreditassem que jamais serão confrontados com a responsabilidade dos seus actos.
Se fosse há alguns anos, os protagonistas destes desacatos talvez até fossem recompensados pelo seu comportamento - porque ele seria inevitavelmente justificado com a cascata de culpas -, mas agora que já não somos ricos e, mais angustiante ainda, temos medo de ficar pobres, as imagens destes encapuçados de Blackberry na mão combinando os saques destruiu o retrato piedoso mas muito inverosímil do jovem excluído lutando contra a injustiça.
Muitos dos protagonistas destes dias de terror vão começar agora a descobrir que já não vivemos nos abastados anos 60 e sobretudo os mais frágeis vão descobri-lo no pior lugar do mundo para descobrir o que quer que seja - o banco dos réus -, pois, se o exercício da transferência de culpas é politicamente perigoso, os seus efeitos sociais são ainda mais perversos. Aliás, nos dois milhões de anos que levamos como espécie, a transferência de culpas apenas uma vez se traduziu em algo de positivo. Quando? Naquele sublime momento em que Rita Hayworth/Gilda desesperada com o atoleiro de culpa em que se movia e para onde a arrastava Glenn Ford/ Johnny Farrell, irrompeu naquela sala e cantou Put the blame on Mame boys.

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