Trabalho versus emprego

João Santos, Publicado i-online 23 de Agosto de 2011   
Há desemprego ou gente que não quer trabalhar? Os estrangeiros foram-se embora, mas muitos portugueses acham-se superiores aos trabalhos que deixaram vagos
O desemprego está também ligado a expectativas erradas
António Pedro Santos
Situação 1: Viajo de táxi a caminho do aeroporto. O taxista conta-me, a páginas tantas, que a mulher tem uma pequena loja de limpeza a seco e se vê grega para arranjar quem lá queira trabalhar. Por mais que faça, quem responde aos anúncios raramente aceita experimentar o trabalho e de quem ousa fazê-lo não chega a rezar a história. Nos dias que correm, já é mau alguém ver-se grego. Imagine-se grego e sem mão-de--obra...

Situação 2: Vejo uma reportagem na televisão. Queixa-se uma empresária do ramo têxtil que não encontra quem queira operar as máquinas de costura, que por isso estão paradas. Precisa de seis operadoras e... nada. O centro de emprego local até colabora - seleccionou para entrevista 17 candidatas. Sucede que dez nem sequer se deram ao incómodo de aparecer. Das demais candidatas, uma referiu que o trabalho lhe fazia falta mas não ia deixar de gozar férias, até porque já tinha casa paga. Nunca mais apareceu. Outra também disse que precisava muito de trabalhar mas tinha de ver melhor o trajecto casa emprego porque não se podia molhar toda. No dia seguinte, o marido ligou à empresária em causa dizendo que a mulher estava com uma depressão, o que a deixava indisponível para aceitar o trabalho. Chegou a haver um pedido para que fosse dada uma oportunidade a uma jovem grávida, mas, apesar da disponibilidade da empregadora, nem essa desempregada apareceu.

Situação 3: Entrevistámos uma candidata a empregada doméstica, que em visita guiada à casa nos pergunta se a televisão da cozinha "tinha" a SIC Notícias. É que a senhora gosta de ver umas notícias à hora de almoço. Grave lacuna da nossa humilde morada... Perguntou-nos ainda se tínhamos seguro de acidentes de trabalho, porque tendo a casa um pé direito daqueles de certeza que mais dia menos dia ia cair do escadote abaixo. Andar de autocarro para ir buscar os nossos filhos à escola seria um suplício. Acabámos por concordar que talvez a minha casa e o meu modo de vida não reunissem os requisitos mínimos para que a candidata pudesse exercer satisfatoriamente as funções. Apesar de nos ter dado nota da sua situação financeira aflitiva.

Há mais histórias destas? Há. Muitas? Imensas! Mais do que seria de esperar num país como Portugal em 2011. A taxa de desemprego está ligeiramente acima dos 12%, a mais alta desde que aderimos à então denominada Comunidade Económica Europeia. Regista-se um movimento notório de fuga de muita mão-de-obra estrangeira, designadamente daquela que nas últimas décadas se prestou a ocupar milhares de postos de trabalho para os quais não havia portugueses disponíveis.

Tudo isto dá muito que pensar. Podem dizer-me que a nossa população activa está, em geral, mais qualificada e habituou-se nas décadas mais recentes a padrões de vida mais elevados. Por isso, oferece resistência à aceitação de trabalhos menos qualificados e menos bem remunerados. Admitamos que sim. Mas não será essa visão bastante redutora e assaz distorcida da realidade? Como é que se justifica que entre tantas centenas de milhares de portugueses desempregados não se encontrem num estalar de dedos meia dúzia de pessoas para operarem algumas máquinas de costura? Ou para trabalharem atrás de um balcão de uma loja? E o papel do Estado no meio de tudo isto? Como é que se admite que pessoas inscritas nos centros de emprego não compareçam a entrevistas de trabalho sem uma muitíssimo boa justificação? Quem é que paga esse descaramento?

Algo de muito errado se passa. Como se costuma dizer, há muita gente que não está a ver bem o filme. Na maior parte dos casos são aqueles que, ao invés de trabalho, procuram emprego. Assim não vamos lá...

Advogado

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