Passos, um homem de sorte no reino dos Oh! Oh!

Público 2011-09-29 Helena Matos
Passos Coelho é o primeiro líder do PSD que pode governar sem ter de pedir desculpa por não ser socialista

Ontem, numa pequena notícia do PÚBLICO, dei de caras com a ilustração do estado de graça de Passos Coelho. Relatava ela que, feitas as contas, os trabalhadores da CML afectos a uma obra em Alvalade trabalham quatro horas por dia. Como o pessoal destacado para esta obra em Alvalade reportava a um serviço sito na Rua do Arsenal, o tempo de trabalho restante era ocupado com idas e vindas do Arsenal a Alvalade para almoçar, pegar ao trabalho e largar o trabalho. Perante este e outros casos, uma autodenominada Comissão para a Promoção das Boas Práticas (o nome que dão a estas estruturas deve sair de um manicómio) propusera que, face à "crise que o país atravessa e à fraca produtividade de alguns trabalhadores da Câmara de Lisboa", "os operários e outros funcionários do município e das empresas municipais passarem voluntariamente à situação de licença sem vencimento de longa duração para poderem exercer funções na câmara, ou fora dela, como tarefeiros contratados." Diria alguém recém-chegado que boa prática seria que a produtividade passasse a ser superior e que se o trabalho é em Alvalade não se vai picar ponto e almoçar ao Arsenal ou vice-versa.

O que tem o estado de graça de Passos Coelho a ver com isto? Tudo. Durante décadas, cada vez que alguém tentava alterar a legislação que permite estes absurdos começava o coro dos "Oh! Oh!". Eram os Oh!"s muito indignados dos sindicatos com o que imediatamente definiriam como ataque brutal aos direitos dos trabalhadores; os Oh! de enfado dos líderes do PS e do PSD perante as controvérsias e a má imprensa que este tipo de alterações sempre gera; e os Oh! reflexivos de um politólogo, dois sociólogos e três psicólogos sobre a desumanização do mundo capitalista bem patente na tentativa de alteração legislativa. Aqui chegados, o ingénuo que tentara mudar o que quer que fosse já se tinha dito e desdito e, para que a polémica acabasse mais rapidamente, até introduzia uma possibilidade de passear ainda mais de cá para lá no regulamento que em má hora pensara alterar.

Neste momento, sabemos que não podemos continuar assim. Esta crise teve a virtude de mostrar que quem paga as contas da baixa e da alta produtividade são os portugueses e estes não conseguem pagar mais passeios entre Alvalade e o Arsenal. Logo, Passos Coelho beneficia deste sentimento de inevitabilidade e também da imposição externa de um plano: as grandes mudanças em Portugal nunca resultaram de um debate ponderado, do voto ou de um esforço de racionalidade, mas sim de uma imposição. Logo, se o seu Governo não perder o tino, Paulo Macedo não sofrerá o calvário de Leonor Beleza, Vítor Gaspar não será acusado de ter a obsessão do deficit e Nuno Crato pode muito bem ser o primeiro ministro da Educação a não sair da 5 de Outubro como um derrotado. (A propósito de Educação, os prémios pecuniários aos melhores alunos suspensos por Nuno Crato eram uma excelente iniciativa de Lurdes Rodrigues: os melhores devem ser premiados e fazer com o prémio o que entenderem).

Mas, para lá deste estado de verdadeira graça, graça porque resulta não da tolerância dada aos recém-chegados ou da boa imprensa, mas sim de algo muito mais profundo - a nossa desgraçada situação e a necessidade de acreditarmos que vamos sair dela -, Passos Coelho é o primeiro líder do PSD que, na qualidade de primeiro-ministro, pode governar sem ter de pedir desculpa por não ser socialista. Este complexo de inferioridade político e cultural dos sociais-democratas levou e leva a que, uma vez no Governo, fujam da ideologia como da peste e apostem em mostrar a bondade das suas posições através da construção de obra ou então aprovando programas e legislação de cariz socializante.

Não por acaso, foi um ministro socialista, Maldonado Gonelha, que declarou ser necessário partir a espinha aos sindicatos e foram socialistas os líderes que nos mandaram meter o socialismo na gaveta e pediram ajuda externa para Portugal. Se não fossem socialistas, seriam dados como politicamente inapresentáveis, tal como agora sucede com Jardim. Esta atitude de quem não tem de pedir desculpa por ser quem é, aliada à forma como encaram o poder, fez dos socialistas a família política com mais condições para reformar Portugal. Podiam tê-lo feito em 2005. Infelizmente, falharam.

As eleições de 2011 deram a vitória ao PSD. Não creio que a única coisa que se deve exigir a Passos seja que governe. Passos tem a oportunidade de fazer mais: pode clarificar ideologicamente a política portuguesa transformando o PSD de um partido que se legitima através do perfil dos líderes que são sérios e fazem obra (Cavaco Silva) ou que aposta no mito do bom aluno que vai executar exemplarmente o programa da troika e salvar Portugal (ele mesmo, Passos Coelho) num partido que não tem vergonha de não ser de esquerda. A democracia, que é muito mais importante que a crise, ficava agradecida. Ensaísta

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