Os cristãos e a cultura

 Guilherme d’Oliveira Martins
A voz da verdade, 2011.11.20
Recordo uma fotografia emblemática, é de 1948, que representa Graham Greene com François Mauriac. Ambos estão no auge do seu sucesso e aquele encontro representa as diferenças e as confluências das obras dos dois romancistas. Vê-se que se admiram e respeitam, muitos dos temas que tratam são profundamente diferentes, mas as preocupações confluem. Pela vida fora, surpreenderão os seus leitores, cientes de que o cristianismo que os une exige um compromisso com a verdade, que é muito mais importante do que a previsibilidade. Conhecem bem a técnica das parábolas e, no fundo, procuram reescrevê-las com ingredientes contemporâneos. A austeridade da fotografia a preto e branco esconde para todos os leitores dos dois celebrados escritores uma multidão de temas e de personagens. Com Graham Greene vem-nos à memória o drama de “O Poder e a Glória” em que a Graça e o Pecado se encontram e desencontram – uma vez que o romancista britânico diz-nos que é na situação limite e no afrontamento do mal que a Graça se revela. Muitos não o compreenderam, mas o tempo veio a revelar que o livro se tornou uma referência do nosso tempo – colocando-nos no centro da dúvida e da fé. De que vale ficarmo-nos apenas na comum normalidade? É preciso interrogarmo-nos sobre a essência das coisas, o que obriga a ir até às fronteiras onde os sentimentos, as virtudes e o pecado se encontram. A samaritana surpreende-se por encontrar Cristo àquela hora na fonte. Muitos se escandalizam… Tal como no drama de Tabasco no México, perante a perseguição e a incerteza, devemos lembrar o caso de “Thérèse Desqueiroux”, em que François Mauriac também afronta a humanidade pelo lado da presença constante de um confronto de resultado incerto entre o bem e o mal. A Graça e a liberdade encontram-se e não se anulam. Como disse Paul Henri Simon: «Mauriac engendra um outro trágico, mais complexo e mais moderno, do homem que age e que luta, suspenso entre duas eternidades, do nada e da salvação, entre o infinito deserto e a plenitude infinita do amor, sem que saibamos por que lado se deixará levar…».
Mas nessa fotografia austera e belíssima está presente um debate sempre inacabado – o de saber se há uma literatura cristã ou católica. Greene e Mauriac consideram-se, antes de tudo, romancistas. O seu compromisso com a criação e a cultura obriga a entrar propositadamente nos caminhos difíceis, arriscados e ameaçadores. É verdade que Mauriac não segue as audácias de Léon Bloy ou de Georges Bernanos, mas, em momentos cruciais dá o testemunho difícil de pôr em confronto o nada e o infinito, a Graça e a liberdade. É verdade que ambos são cristãos, e é também certo que os valores dos Evangelhos estão bem presentes na sua escrita, ainda que muitas vezes façam questão de partir dos antípodas ou do avesso. No entanto não há um romance cristão como não há uma arte cristã. Há, sim, cristãos na arte e na vida – de Fra Angelico a Rouault. Mauriac fala de iluminação pela fé e da presença de Jesus Cristo - «foi o estado de pecado e é o estado de graça que fizeram o dia e a noite do mundo humilde que imaginei – estas trevas atravessadas de raios». E como é bem evidente no inesperado encontro de Cristo naquela tarde quente do que se trata é de dar testemunho pela dignidade humana não numa sociedade formatada e perfeita, mas situada entre a imperfeição e a estranheza – porque o vento da Graça sopra onde menos se espera.

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