Como a greve dos médicos mostrou o absurdo do acórdão do Tribunal Constitucional

Público 2012-07-13  José Manuel Fernandes
Os juízes falaram de igualdade mas não quiseram avaliar o que é desigual no estatuto dos funcionários públicos


Sabem quantas vezes se utiliza a palavra "desemprego" na deliberação do Tribunal Constitucional sobre os subsídios na administração pública? Apenas uma vez. E essa vez é quando se cita a lei do Orçamento do Estado. De sua lavra, nunca os juízes a escreveram. É, a meu ver, um detalhe que diz muito sobre o sentido daquela deliberação, já que esta tratou de analisar o "princípio da igualdade", mas considerou "irrelevante" o facto de os funcionários públicos terem mais segurança no emprego. Quando em Portugal há mais de 15% de desempregados, considerar que "não é idóneo" (estou a citar o acórdão) ter este factor em consideração, quando se debate uma justa distribuição dos sacrifícios, é próprio de quem vive longe, muito longe, do mundo real e das dificuldades sentidas pela maioria dos portugueses.

De todos os juízes, só um - Maria Lúcia Amaral, que votou contra a resolução - teve a humildade de reconhecer "que não dispunha aqui o tribunal de nenhuma evidência que lhe permitisse comparar o grau de sacrifício exigido aos afectados por estas medidas e o grau de sacrifício efectivamente sofrido por outros". A maioria do tribunal resolveu proceder a tais comparações, e, ao fazê-lo, cometeu erros grosseiros, nomeadamente ao ignorar que existem estudos, realizados pelo Banco de Portugal, que comprovam a diferença entre os salários públicos e privados - com vantagem para os trabalhadores do Estado - para categorias profissionais com a mesma formação e anos de experiência.

Não posso pois deixar de considerar grave um acórdão que interpreta um princípio indiscutível, o da igualdade, de forma enviesada. Pior: um acórdão que depois, na sua componente mais estritamente jurídica - a de saber se a inconstitucionalidade se aplicava já ou só para o ano -, entra por um caminho muito duvidoso, talvez por alguns juízes terem procurado evitar danos maiores. O mal, neste caso, não está na Constituição, está na interpretação que dela foi feita: os juízes não quiseram avaliar o que é desigual no estatuto dos funcionários públicos (o vínculo laboral, a vantagem salarial, o horário de trabalho, a ADSE e por aí adiante), quando estavam a avaliar o princípio da igualdade. Ao actuarem desta forma reforçaram a convicção de que, no nosso país, há mesmo dois mundos: o mundo relativamente protegido do emprego público, e o mundo dos que têm de fazer das tripas coração todos os dias para terem os seus ordenados ao fim do mês e pagarem os seus impostos.

A dimensão da greve dos médicos não me surpreendeu. O que me surpreendeu foi verificar como as reivindicações substantivas dos sindicatos e da Ordem - não as reivindicações retóricas, para consumo da opinião pública - visam, em última análise, prolongar um estatuto de excepção só possível dentro da mesma lógica que alimenta o acórdão do Constitucional. Sempre que tinham um microfone por perto, os médicos afirmavam estar em luta pela defesa do SNS. Mas, se se olhava para os cartazes que levaram para a manifestação frente ao ministério, via-se que neles se falava sobretudo de carreiras médicas e de contratação colectiva. Porque é realmente isso que preocupa os sindicatos médicos, como se pode comprovar lendo o seu caderno reivindicativo.

Não duvido que muitos médicos, porventura a maioria, acredite sinceramente que a futuro do SNS passe pela continuação das condições contratuais a que se habituaram nas últimas décadas e que, não se duvide, são muito favoráveis, quando comparadas com as de todas as outras profissões. Durante décadas só os licenciados em Medicina tinham a permanente garantia de emprego no final dos seus cursos. Não foi pouco, não é pouco. Como não é irrelevante poderem beneficiar de uma carreira pública e, ao mesmo tempo, fazerem clínica privada, algo que não está ao alcance de outras profissões com carreiras públicas bem delimitadas, como juízes ou militares. Também podem receber horas extraordinárias, o que não se conhece nessas outras profissões. Mais: terão os médicos noção de como, no sector privado como no sector público, o pagamento de horas extraordinárias é hoje cada vez mais uma excepção, sobretudo onde se luta todos os dias por manter postos de trabalho?

Exigências como a de uma "grelha salarial para a carreira médica única" reflectem uma visão monolítica e estatizada do exercício da profissão que não é compatível nem com um mundo mais complexo, nem a necessitar de soluções mais flexíveis e menos corporativas. Ser médico sempre me pareceu dever ser mais qualquer coisa do que ser simples funcionário do Estado, e essa componente não a encontro nos cadernos reivindicativos. Mas já lá encontro, em contrapartida, uma feroz oposição a que se proceda à limpeza das listas de doentes que não utilizam os centros de saúde, para poder acolher outros sem médico de família, uma preocupação dos sindicatos que me parece muito pouco compatível com o discurso de que estão a defender um melhor acesso aos cuidados de saúde.

O pretexto próximo desta greve foi um concurso para fornecimento de dois milhões de horas de serviços médicos. É bom ter noção do que isso representa: considerando 40 horas de trabalho semanal, falamos do equivalente a um pouco mais de mil horários completos - ou seja, sensivelmente 2,5% do total. Os médicos podem, com razão, considerar indigno o salário horário indicado, apesar de o concurso nem sequer ter sido fechado, mas estamos sempre a falar de uma excepção que afectaria (não chegou ainda a afectar), no máximo, um em cada 40 médicos. É necessário pois ter a noção das proporções.

Mas importa também perceber porque é que se chegou a um ponto em que é necessário recorrer a médicos contratados, digamos assim, "à peça". Isso é também consequência de um regime de carreiras e de contratações que é muito rígido e de hábitos de horas extraordinárias que eram demasiado generosos. Este país é o mesmo onde, há ainda poucos anos, o Tribunal de Contas detectava médicos a ganhar entre 250 mil e mais de 750 mil euros por ano no SNS. Este é também o país onde, para se conseguir recuperar cirurgias em atraso, se promoveram esquemas de incentivos que permitiram a muitos médicos ganhar dezenas de milhares de euros por mês no SNS. O mesmo SNS que vinha acumulando dívidas cada vez maiores. A contratação à hora é o reverso da medalha destes regimes: onde há muita rigidez e custos elevados associados, surgem por regra situações de precariedade a preço de saldo. É o mundo dual dos que têm porque estão no sistema e dos que não têm, mas cuja grande ambição - como se via nas reportagens sempre que estas focavam estudantes ou jovens internos - é passarem a fazer parte também do sistema.

Não era preciso vivermos a crise actual para termos de mudar. A evolução dos gastos com a saúde é tão rápida - em Portugal e em todo o mundo desenvolvido - que o esforço de racionalização de custos tem de ser permanente, mesmo em países mais ricos do que nós. Com ou sem crise os médicos não podiam esperar continuar a ter um estatuto, uma carreira e um regime remuneratório que mesmo não fazendo deles ricos não é suportado pela riqueza que a sociedade gera. É por isso que estou convencido que, depois do enorme efeito de descompressão desta greve, a maioria dos médicos não vai fazer como os juízes do Tribunal Constitucional, isto é, não vai enfiar a cabeça na areia para não ver o que se passa no resto do país e com as outras profissões.

PS: Durante algum tempo julguei que Pedro Passos Coelho iria manter Miguel Relvas porque este funcionava com uma espécie de pára-raios que atraía a si todas as fúrias e poupava o primeiro-ministro. Hoje sei que se o fizer incorre num terrível erro moral. A percepção de que há protecção para o esquema duvidoso, para a chico-espertice (mesmo legalíssima) e para o favorecimento corrói inexoravelmente a autoridade de quem impõe sacrifícios. E destrói a base de apoio a qualquer política reformista. Não sei mesmo se o mal já feito algum dia será recuperável. Sócrates nunca recuperou da crise da licenciatura.


Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António