Mentalidade pública

DN 2012-07-02
JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Hoje existem várias crises simultâneas e nem sempre as piores são as mais patentes. Temos uma crise financeira. Isso todos sabem. A dívida é alta e há que a pagar. Mais grave é a crise económica. Anos de dinheiro fácil distorceram mecanismos e promoveram actividades espúrias e perdulárias. A correcção desses desvios, que gera o enorme desemprego, vai ser longa e pior que a da dívida.
Estas duas crises são visíveis, motivam a atenção de todos e as políticas do governo e troika. Mais importantes, mas menos debatidas, são as mudanças em comportamentos e regras, abandonando vícios que o longo período de esbanjamento promoveu. A crise de fundo é cultural.
Nesse campo existem duas tarefas, uma acessível, outra penosa. É urgente os portugueses mudarem de hábitos, corrigindo muitos desperdícios e exageros involuntários que os tempos de facilidade suscitaram. Mesmo que a prosperidade regresse, é preciso nunca voltar ao esbanjamento conspícuo dos últimos anos. Além disso, perante a grave recessão, é mesmo urgente cortar coisas importantes. Esta é a famigerada "mudança de mentalidades" que tantos analistas recomendam. Mas tal adaptação, mesmo dolorosa, é fácil de conseguir.
As pessoas reagem a incentivos. Este princípio básico da economia tem como corolário que é rápido transformar os hábitos de um povo quando as circunstâncias mudam. Todos os que se acostumaram a despesas exageradas quando o vento soprava a favor, corrigem logo os orçamentos face às dificuldades. Não há dúvida acerca das terríveis dores que alguma dessa adaptação implica. Mas não é preciso andar a sugerir mudança de mentalidades, porque ela acontece logo e naturalmente.
O que é muito mais difícil de mudar são as mentalidades públicas, rigidamente consagradas em leis, regras e imposições. Os anos de decadência não afectaram apenas os cidadãos. Aliás o seu maior impacto foi nos hábitos do Estado, que se acostumou a manias sumptuárias, exigências mesquinhas, requintes exagerados. Sempre em nome de propósitos meritórios, criaram-se regulamentos minuciosos, quesitos mirabolantes, inspecções obsessivas. Pior, devido à obsessão regulamentar dos tempos modernos, em que tudo tem de ser estatuído legalmente, essa rigidez é tão omnipresente que pode ser fatal. Boa parte dessas obrigações vinha dos países ricos que queríamos imitar, e uma grande fatia até era imposta por directivas comunitárias. Se uma burocracia nacional pode ser imbecil, uma burocracia supra-nacional é super-imbecil.
A vida dos cidadãos e a actividade económica ressentem-se há muito dessas tolices. Nos tempos fáceis a coisa era suportável. Agora, em momento de aperto, tais legislações transformam-se em agressões criminosas. Os exemplos são miríade. Boa parte deles estão a sabotar o crescimento e criação de emprego em nome de valores secundários, impossíveis de manter sem crescimento e emprego. Para ilustração basta um caso doméstico.
Há meses o DN noticiou: "Mais de 60 mil condutores foram multados no ano passado por falta da Inspecção Periódica Obrigatória (IPO) dos veículos, infrações que aumentaram quase um quarto em relação a 2010" (24/ /Fev). Este caso mostra como a lei é rígida, insensível e estúpida. Não existem dúvidas acerca das vantagens da IPO, mas também é verdade que está longe de ser indispensável. Vivemos décadas sem ela. Em momento de tanto aperto é perfeitamente sensato e razoável adiar a revisão do carro. Ninguém, que ainda consiga pagar a gasolina, passa a andar a pé por falta da senha.
Se a lei não entende isso e, pior, manda a polícia perseguir os pobres honestos, é ela que tem problemas de mentalidade. A função das autoridades é perseguir criminosos, não punir pessoas com pouco dinheiro por andarem de automóvel. Impor regras secundárias em momento de emergência mostra uma mentalidade mesquinha que degrada a credibilidade do Estado. Os dirigentes responsáveis por esta tacanhez ainda têm o desplante de recomendar mudança de mentalidade ao povo, que não lhes compete e está muito mais avançada que a sua.



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